Número total de visualizações de páginas

domingo, 22 de dezembro de 2013

Natal (Do lacrau e da sua picada)

Nem se despe, para quê a maçada, se se deita sozinha — quem a viu e quem a vê! — e sobre a cama que insiste em rodar, sempre no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, volta atrás no tempo, muito atrás, até à meninice agora tão distante, agora tão longe, nos antípodas do tempo e do espaço.
Bons tempos, esses, os da infância, quando o mundo era de confiança e se crescia feliz e protegida, ignorante de tudo, até da própria pobreza, feliz com a roupa herdada das primas, feliz com os primeiros brincos, com uma simples boneca de plástico, nua como todos nós ao nascer, para depois lhe costurar os vestidos, ajudada pela mãe ou pelas primas mais crescidas... Bons esses natais, em casa dos avós, o mau tempo lá fora... O vento, furioso, investindo contra a casa, procurando orifício por onde entrar, as mulheres ao lume cosendo, remendando, tagarelando sempre, as panelas negras como carvão fervendo as couves para os porcos, a cafeteira enfarruscada aquecendo o café de cevada ou a água com açúcar para a sossega, o sapato deixado na lareira à espera das prendas que o Menino Jesus trará pela calada da noite, descendo pela chaminé quando todos dormirem...
Depois, a cama roda em sentido oposto, os avós já morreram, primeiro ele, depois ela. Os pais instalam-se de vez na casa herdada, fazem obras, o centro da casa, passa a ser a sala de jantar, completamente modificada e mobilada, a lareira só raramente é acesa, para não sujar, o presépio dá lugar à Árvore de Natal, o Menino Jesus é substituído pelo Pai Natal; então já tudo perdeu a graça, os pais deixam-se de fitas e acabam por lhe entregar em mão as prendas.

Do lacrau e da sua picada (2008)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Agonia

A mulher e a filha, que uma só não pode com ele, levam-no para dentro de casa, deitando-o no divã onde dorme só. Ocorre-lhe, então, que toda a sua vida foi apenas um dia que agora chega ao fim, embora a agonia se possa arrastar por meses ou mesmo anos, como sucedeu ao avô, acamado durante seis anos. Até lá, pelo seu cérebro enevoado como o de recém-nascido continuarão a desfilar imagens, sensações, fragmentos de histórias, que não raro se amalgamam numa outra maior — e as personagens desmenti-la-iam se a ouvissem, dizendo que pessoas, tempo e acontecimentos estão
baralhados, mas isso não importa — que é um nome, que é uma data mais do que um açude efémero que tenta deter por um momento que seja Vida e Tempo? O passado mais longínquo e o presente mais recente fundem-se  e vê novamente jovens rostos que morreram velhos — Aquele é o Mitadá, e o velho tem agora oito anos, e ambos ouvem a bisavó contar como fugiram dos franceses para a Mata da Castanheira e como por lá sobreviveram, era ela uma menina e os franceses emboscaram-nos: — Matamo-los?, perguntou um. — Não, deixa-os ir, são apenas crianças, respondeu outro, sem que nenhum dos miúdos estranhasse que a avó tivesse compreendido o Francês, é o deslumbramento da descoberta de um ninho de melro num vergueiro na cova da Silveirinha, e as avezinhas implumes e cegas abrem novamente os bicos enormes relacionando o ruído da folhagem afastada com a chegada dos progenitores, é a cabaça de água-pé que leva à boca em dia de estiagem, e a bebida faz novamente gluglu enquanto lhe escorre pelas goelas abaixo, é a satisfação do estrume nos poceirões da burra a caminho do chão-de-horta que depressa fará crescer enormes pepinos e tomates, patarecos e melancias e sempre, sempre, a água que corre livre pelas regueiras e que ele captura numa folha de couve para sorver deliciado matando a sede em dia de Verão escaldante... 
Como o vento que em certos dias de Inverno sopra de todas as direcções, dando-nos a sensação de o ter sempre pela frente, assim são as suas memórias, surgindo sem causa, por vezes indesejadas, impondo a sua própria lógica, que, a bem dizer, não é nenhuma, pois talvez nem mesmo o Sol, que nasceu bem antes da humanidade e certamente morrerá bem depois dela desaparecer, saiba porque se levanta todos os dias a Nascente para se deitar a Poente.
Porque se lembra agora dos ninhos? Porque sofre novamente como quando os rouxinóis-pais o seguiram durante toda uma tarde, piando dolorosamente, por lhes ter tirado os filhos ainda implumes, sonhando, na sua ingenuidade infantil, criá-los e impressionar toda a aldeia ao ser o único possuidor de rouxinóis cantantes? Morreriam pouco depois, nesse mesmo dia, tendo-os antes abandonado já moribundos sobre um muro velho, na esperança vã de que os pais cuidassem deles e deixassem de o perseguir piando de forma tão dorida que a recordação lhe dói hoje como lhe doeu então.
Cai a noite sobre a aldeia, mas não cai ainda a noite sobre o Jaime, pondo fim ao seu definhar lento, qual candeia a que o azeite vai faltando, tresandando a ranço ardido e nauseabundo…

Entre Cós e Alpedriz (2007)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Do vento e do barro

Soprou-me o vento sobre o barro, assim fez o meu ser,  pés colados à terra, cabeça acima das nuvens. Cozeu-me à sua imagem — irascível, instável, amigo de larguezas e de solidões. Deu-me por brinquedos imaginação e argila para os moldar — quase sempre aviões, como os que sobrevoavam as vinhas por onde corria descalço, braços abertos como asas tentando elevar-me da mediocridade terrena, e embalado nas descidas pulava barreiras e silvados, e por instantes também eu voava, não tão alto como os jactos que traçavam no céu linhas brancas, nem como os falcões que nele planavam, nem sequer como as esquivas perdizes de voo curto — era antes esvoaçar de melro de moita em moita, coisa de metros, depois, o preço de cada sonho: trambolhão na realidade, amortecido pela terra mole sempre amiga, para outra vez  me levantar e acelerar ladeira abaixo, outra ribanceira, outro salto, outra queda... 
No seu soprar constante o vento levou-me os cabelos um por um, metaforizou as minhas ribanceiras, os meus silvados, os meus voos, só preservou a veleidade de querer elevar-me acima da terra de que me fez, isolando-me daqueles que por todo o lado protestam, resmungam, vociferam, insultam, ameaçam. 
Torno-me suspeito pelo silêncio — a minha linguagem é outra. Oiço as vozes, escuto as raivas, misturo-as, observo as vidas, confundo-as, depois moldo-as no barro da minha escrita, sopro-lhes a vida, na esperança de que se não esboroem tão depressa como o pó de que o vento me fez...

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

As uvas do pessoal

O povo. Espezinhado, oprimido durante meio século — sem erguer a voz. Veio o 25 de Abril e era ouvi-lo gritar que jamais seria vencido. Na vanguarda, o sr. João: chegara a hora da mudança. De  fazer cooperativa, onde pobres e ricos entregassem a fruta, as uvas, e recebessem justa paga. 
Defendia a ideia há muito, no café, no largo, respeitosamente escutado — afinal era o senhor João, proprietário de muitas terras, empregador de servos —, mas, mal virava costas,
— O que ele quer sei eu!
Sabiam. Que toda a gente é igual, todos querem tudo para si, nada para os outros. Que Deus fizera torto o Mundo e não havia dilúvio que o endireitasse. Que o homem é o ladrão do homem. Não que negassem razão ao sr. João. Bem sabiam que os intermediários vendiam em Lisboa os pêssegos cinco vezes mais caros. Que penavam para receber o dinheiro do vinho vendido, esmolando adiantamentos junto dos compradores, figurões da terra, os quais pagavam quando e como queriam. 
Mas no minifúndio os camponeses têm dupla personalidade, simultaneamente proprietários e assalariados; cuspiam nas mãos, como se ainda segurassem o cabo da enxada, empurravam a boina para o alto da cabeça, acenavam afirmativamente, sim senhor, uma cooperativa é coisa boa, isso é que nos resolvia as coisas, mas mal o sr. João virava costas costas lá vinha
— O que ele quer sei eu!
Desconfiavam dele, bem se via. Era ateu. Contra o regime. Desconfiavam da família: um tio, republicano velho, estivera envolvido nos motins contra Salazar e, murmurava-se, em morte de homem. Um irmão, desertor, estava fugido em França.
Veio o 25 de Abril e o sr. João assumiu-se: era da CDU. Para os camponeses — comunista, como sempre tinham suspeitado.
A cooperativa avançava, empregava gente na abertura dos alicerces:
— O que é que fazes agora?
— Ando na construção da adega dos comunistas!
Nunca passou das fundações. Matou-a a caça aos comunistas, no Verão Quente de 75. Pouco importava se eram militantes ou meros simpatizantes. O ódio ancestral ao jacobinismo, aos pedreiros livres, aos ateus, renascera com as ocupações de terras no Alentejo, e os mais raivosos eram aqueles que de seu pouco iam além dos sete palmos que nos esperam no cemitério. 
A cooperativa, que comprara uvas, não as pagava, que o vinho não escoava, perdidos os mercados africanos com a descolonização. 
Pôs-se a esperança na ajuda revolucionária:
— A União Soviética compra o nosso vinho!
Não fazia diferença o serem vermelhos — contanto que o quisessem. E durante algum tempo sonhou-se largo, seriam muitos milhões de bêbedos eslavos a trocar o ruim vodka, que tanto mal faz à saúde, pelo nosso tinto quem sabe se graças a ele se operaria o terceiro milagre de Fátima, a conversão da santa Russia. Mas os tempos não estavam para milagres, e a fraternidade revolucionária era mera propaganda. O vinho não se vendia.
E numa noite homens revoltados pintaram em letras vermelhas no muro da casa do sr. João 
Pequeno Cunhal
Quando é que pagas as uvas do pessoal?"