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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Agonia

A mulher e a filha, que uma só não pode com ele, levam-no para dentro de casa, deitando-o no divã onde dorme só. Ocorre-lhe, então, que toda a sua vida foi apenas um dia que agora chega ao fim, embora a agonia se possa arrastar por meses ou mesmo anos, como sucedeu ao avô, acamado durante seis anos. Até lá, pelo seu cérebro enevoado como o de recém-nascido continuarão a desfilar imagens, sensações, fragmentos de histórias, que não raro se amalgamam numa outra maior — e as personagens desmenti-la-iam se a ouvissem, dizendo que pessoas, tempo e acontecimentos estão
baralhados, mas isso não importa — que é um nome, que é uma data mais do que um açude efémero que tenta deter por um momento que seja Vida e Tempo? O passado mais longínquo e o presente mais recente fundem-se  e vê novamente jovens rostos que morreram velhos — Aquele é o Mitadá, e o velho tem agora oito anos, e ambos ouvem a bisavó contar como fugiram dos franceses para a Mata da Castanheira e como por lá sobreviveram, era ela uma menina e os franceses emboscaram-nos: — Matamo-los?, perguntou um. — Não, deixa-os ir, são apenas crianças, respondeu outro, sem que nenhum dos miúdos estranhasse que a avó tivesse compreendido o Francês, é o deslumbramento da descoberta de um ninho de melro num vergueiro na cova da Silveirinha, e as avezinhas implumes e cegas abrem novamente os bicos enormes relacionando o ruído da folhagem afastada com a chegada dos progenitores, é a cabaça de água-pé que leva à boca em dia de estiagem, e a bebida faz novamente gluglu enquanto lhe escorre pelas goelas abaixo, é a satisfação do estrume nos poceirões da burra a caminho do chão-de-horta que depressa fará crescer enormes pepinos e tomates, patarecos e melancias e sempre, sempre, a água que corre livre pelas regueiras e que ele captura numa folha de couve para sorver deliciado matando a sede em dia de Verão escaldante... 
Como o vento que em certos dias de Inverno sopra de todas as direcções, dando-nos a sensação de o ter sempre pela frente, assim são as suas memórias, surgindo sem causa, por vezes indesejadas, impondo a sua própria lógica, que, a bem dizer, não é nenhuma, pois talvez nem mesmo o Sol, que nasceu bem antes da humanidade e certamente morrerá bem depois dela desaparecer, saiba porque se levanta todos os dias a Nascente para se deitar a Poente.
Porque se lembra agora dos ninhos? Porque sofre novamente como quando os rouxinóis-pais o seguiram durante toda uma tarde, piando dolorosamente, por lhes ter tirado os filhos ainda implumes, sonhando, na sua ingenuidade infantil, criá-los e impressionar toda a aldeia ao ser o único possuidor de rouxinóis cantantes? Morreriam pouco depois, nesse mesmo dia, tendo-os antes abandonado já moribundos sobre um muro velho, na esperança vã de que os pais cuidassem deles e deixassem de o perseguir piando de forma tão dorida que a recordação lhe dói hoje como lhe doeu então.
Cai a noite sobre a aldeia, mas não cai ainda a noite sobre o Jaime, pondo fim ao seu definhar lento, qual candeia a que o azeite vai faltando, tresandando a ranço ardido e nauseabundo…

Entre Cós e Alpedriz (2007)

2 comentários:

José Catarino Rodrigues disse...

O pior é que essa afirmação de que os homens morrem de velhos,mas como meninos é a mais absoluta verdade. E quando estamos aproximando da velhice, que a tolice moderna chama de ancianidade, começamos a sentir vontade de fazer o que fizemos na infância, para quem a teve. Dias desses cheguei ao sítio e senti vontade comer manga de vez, igual quando era criança. Quando estou preparando, para subir, coloqueri uma escada e tal, o caseiro, mais novo do que eu não me deixou subir, se oferecendo para tirar as frutas meio verde com uma vara. Não foi a mesma coisa. O sabor da manga de vez que eu queria era o sabor da infância, quando não tinha nem paciência para esperar a manga amadurecer no pé. É apenas um exemplo. No amor é muito pior do que isto.

JCC disse...

Caro José Catarino, meu quase homónimo (creio que aí, no Brasil, dizem xamã):
Tal como refere, a manga colhida no passado, meio verde, trepando à árvore, tem outro sabor -- o da infância perdida no tempo que já passou. E apercebemo-nos de que o gosto já não é, não pode ser, o mesmo de outrora porque, ao contrário dessa manga, amadurecemos. Contra vontade, com sofrimento, por vezes com amargura, quase sempre com saudade.
Não é que me desagradem as ilusões quotidianas com que nos atordoamos para esquecer o nosso destino inexorável. Mas, como os clássicos, quero também enfrentar tão lucidamente quanto possível o meu drama de homem: envelhecimento, degradação, morte -- que talvez nem seja o pior dos males que nos esperam...
Por isso, esses temas -- envelhecimento, degradação, morte -- são fulcrais na minha escrita.
Nota curiosa: V/ foi até agora o primeiro leitor a publicamente levar a sério a epígrafe deste blogue, " os homens, mesmo muito velhos, morrem meninos". Já tive pelo menos um comentário a escarnecer da frase...
Esta particularidade do ser humano, a de preservar em idade avançada características infantis, tais como a curiosidade, o gosto pelo saber, o prazer da descoberta, é, estou convencido, a que legitima o epíteto que atribuímos à nossa espécie: homo sapiens. Infelizmente, não é comum a todos os membros da espécie, frequentemente incapazes de se deslumbrarem com a beleza do Mundo, de se intrigarem com os mistérios do Universo.