Número total de visualizações de páginas

sábado, 21 de dezembro de 2019

No jornal Tornado

Tão massacrado tenho sido com as longas prelecções televisivas sobre o Orçamento de Estado — e o pior ainda está para vir! — que fui adaptar este meu texto, escrito quando Sócrates e Passos Coelho dançavam juntos o tango do Orçamento.
https://www.jornaltornado.pt/portugal-profundo/

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Una historia más de guerra

 Em 1975, durante toda uma noite, um soldado pronto, de alcunha o Portimão, infernizou o quartel de Torres Novas, disparando rajada sobre rajada sobre tudo o que mexia. E nós, resguardados nas esquinas, perguntávamos Porquê?”

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Livro What is space? What is time?

A recente passagem por Portugal do físico Carlo Rovelli, que participou nas conferências da Fundação Manuel dos Santos, e uma breve entrevista que deu à televisão, aguçaram-me a curiosidade sobre o seu trabalho na área do espaço e do tempo, e sobre a Gravidade Quântica em Loop, em que se enquadra teoricamente, pelo que imediatamente comprei, como ebook, o seu livro What is time? What is space?, (70 pp. na versão em papel), cuja sinopse promete
“[a] novel image of the world is taking shape in fundamental physics: a world without time and without space. “
Esperava eu encontrar uma nova perspectiva do espaço e do tempo, sustentada por sólidos, ou pelo menos por convincentes, argumentos teóricos e, melhor ainda, empíricos, derivados, por exemplo das mais recentes descobertas, como a confirmação da existência do bosão de Higgs, que permeia o espaço, ou das ondas gravitacionais que o agitam.
Em vez disso, o autor preenche a obra com a sua autobiografia, viagens, universidades importantes, cientistas famosos que por lá conheceu, generalizações filosofadas... 
Sobre os assuntos que dão o título à obra, o espaço e o tempo, muito, muito pouco. Afirma que o espaço não existe — mas refere-se-lhe constantemente, precisando embora que espaço são as conexões entre os grãos do campo gravitacional. Como, porquê? Pois ficamos sem saber, uma vez que é silogisticamente que chega a tais conclusões. Atente-se, por exemplo, nos conectores que assinalei a negrito no seguinte excerto:
If one now combines the basic ideas of general relativity and quantum mechanics, it follows immediately that since space is a field (the gravitational field) space must have a granular structure, as does the electromagnetic field. The quanta of the electromagnetic field are the photons. The quanta of the gravitational field must be “grains of space”, because the gravitational field is the physical space. The dynamics of these grains must be probabilistic. Hence space (i.e. the gravitational field) must be described as “clouds of probability of grains of space”.”

A mesma lógica é empregue para negar a existência do tempo:

“Time does not exist: it is necessary to learn to think about the world in non-temporal terms. This is difficult, because we are accustomed to thinking about time as something in itself, which is flowing.”

Sobre o seu posicionamento teórico, a Gravidade Quântica em Loop, fiquei apenas a saber que a teoria não tem ainda a capacidade preditiva necessária para descrever o Universo e ele mesmo não parece muito convencido da sua virtude, embora a prefira à Teoria das Cordas:
“There are various reasons for which I do not like string theory. One is that the theory predicts an enormous amount of stuff, for which there is no evidence: many extra dimensions, super-symmetric particles, new exotic kinds of particles. Experimental evidence for all this has been searched, but without any positive result. Second, I think that string theory fails to incorporate the true discovery of general relativity: namely the fact that spacetime is just a field.”

Lógico. Se preferisse a Teoria das Cordas trabalharia nela, suponho. E quanto a evidências empíricas, e segundo este livro, a Gravidade Quântica em Loop não está melhor, o que lhe suscita dúvidas salutares, as quais, no entanto, não reforçam nem validam as suas opções teóricas:
“but on the other there is the frustration of the risk of working a whole life on theories that in the end might turn out to be wrong.”


Vou baixar amostras gratuitas dos seus outros livros, na esperança de que sejam mais esclarecedores do que este. Que é uma grande desilusão.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

No jornal Tornado

Invernias

Aí pelos meus cinquenta anos, sentindo a aproximação inexorável do inverno da vida, escrevi “Invernia”, que viria a fechar o romance Entre Cós e Alpedriz:
Invernia

Badaladas do sino
Ecoam pela aldeia deserta
Porta-voz do destino
Recordam aos velhos a morte certa

Quando será nunca mais Primavera
Pelo menos um dia radioso
Que enfeite a atmosfera neste tempo tão chuvoso?

Ah, rapazes do meu tempo
Ah, mocidade da minha geração
Uma fogueira no peito
Uma laranja em cada mão
Esqueçamos o tempo já passado
Vamos apanhar gelo
Vamos colorir o coração

Nasçam malmequeres
Cresça a couve
que se sache e se monde
que se colha e se coma

Lá, onde corre a fresca regueira
onde nasce o agrião
Enchamos o cinzento de laranjas
uma no céu, uma em cada mão


O sino dobra novamente a finados...

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O Drácula

No segundo ano do meu estágio, então chamado Profissionalização em Exercício, chegaram vários colegas de outras escolas. 
Um deles, alto, magro, camisa sem colarinho, longo sobretudo preto, olhar esgazeado, pose de génio, foi logo alcunhado por um de nós: Drácula.
Incompreendido por todos nós,  exceptuando uma outra estagiária, do seu grupo disciplinar, a quem apalpava as coxas nas reuniões, seduzida pela “linguagem do Mestre” — era assim que se lhe referia — pois o nosso Drácula respirava Lacan, arrotava Lacan, tratava-nos, tanto a nós, colegas de estágio, como aos orientadores, com tal sobranceria que me lembro de ouvir um dizer-lhe que, de cada vez que abria a boca, era para nos chamar burros.
Num seminário em que ele arengava interminavelmente, insuportavelmente, um orientador, baixo, obeso, que sempre dormia nas reuniões após o almoço, desculpado pelos seus pares com  problemas cardíacos de que efectivamente sofria e cedo haveriam de o vitimar, interrompeu o forte roncar e, ouvindo o Drácula a proclamar, deliciado com o efeito de choque da boutade, que todos nós temos três pais, resmungou alto:
— Só se és tu!
Ruidosa gargalhada geral quebrou o formalismo, desvaneceu o enfado e enfureceu o distinto orador.

Mas os alunos conheciam-no por outra alcunha. “O professor do c*”.
Isto porque, na aula de apresentação, incomodado com a entrada às pinguinhas da turma, berrou para um dos retardatários com o seu sotaque cerrado do Porto:

— Olha lá, pá, que c*ralho de turma é esta?

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O sindicato e eu

Assim que fui colocado pela primeira vez tratei de me sindicalizar. Entendia ser essa obrigação de cada trabalhador. E, na minha ingenuidade, até li e concordei com os estatutos do sindicato.
Levei a sindicalização a sério. Apresentei lista, candidatei-me a delegado sindical na escola em que então estava colocado — e perdi.
Paciência. Tal não arrefeceu a minha fé sindical.
Até que, após greve selvagem, os professores de uma escola de Lisboa foram despedidos.
Logo o sindicato estendeu asa protectora, comprometendo-se a pagar-lhes os salários, conforme estabelecido nos estatutos.
E eu aprovei.
Mas, poucos meses depois, a pretexto de uma lacuna no boletim de candidatura (lacuna que o certificado de habilitações anexado esclarecia), me vi no desemprego. Sem economias, com renda de casa elevadíssima— as casas para arrendar eram então raras como a chuva neste Outono —, família a meu cargo, nada de empregos, de trabalho naquela época em que o país e a economia andavam pelas ruas da amargura.
E lá vou eu ao sindicato. A querer que pressionassem o Ministério a reapreciar o meu boletim de candidatura. Não valia a pena. Havia milhares como eu, tratava-se de manobra do governo para diminuir drasticamente o número de professores provisórios. Processar o Ministério? Para quê, se lá não havia duas pessoas a dizer o mesmo?
Então, e o subsídio de desemprego, que consta dos estatutos e foi já atribuído aos colegas da escola X?
Riram-se. O sindicato não tinha verbas para tal, diziam. Em funcionários, assessores, equipamentos, rendas, ia-se todo o dinheiro das quotas.
Fui colocado meses mais tarde. E uma das primeira coisas que fiz foi cancelar a minha sindicalização.
Passaram muitos anos. Um amigo, delegado sindical, convenceu-me a voltar a aderir ao sindicato. Fizemos greve prolongada, bem organizada. O governo ia ceder. Depois de tantas greves simbólicas, em que perdíamos o salário para que o PC marcasse posição, finalmente uma que íamos ganhar. E uma manhã, ao entrar na escola, soube que o sindicato, o Teodoro, nos tinha novamente traído, pondo fim à greve sem nos ouvir.
Outra vez cancelei a sindicalização.
Há quem nunca aprenda certas lições. Como eu.
Nos tempos negros da Maria de Lourdes e da sua famigerada avaliação fui a uma reunião sindical, pedi o papéis e voltei a ser sindicalizado.
O dirigente sindical que me inscreveu  bandeou-se para o Ministério da Educação.
E eu continuei a pagar a quota, 1% do salário, até à aposentação.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Da violência nas escolas

Mário Nogueira, dirigente vitalício do meu sindicato, voltou ontem a envergonhar-me publicamente. Foi em declarações que prestou à TV a propósito da agressão a um aluno por parte de um professor de TIC.
Para Mário Nogueira, não há presunção de inocência quando se noticia que um professor bateu num aluno. Essa presunção fica, talvez, reservada para os políticos corruptos, seguramente para os pais que agridem professores e funcionários. Nem importa, antes de mais, apurar os factos, aguardar os resultados do processo disciplinar que foi ou vai ser instaurado.
Adiante.
O que me envergonhou mais, o que me enojou, foi ouvi-lo a retomar a velha discriminação contra os professores não profissionalizados.
(Tantos anos após o 25 de Abril, o velho preconceito, de que também  eu fui alvo, primeiro miniconcursiano, depois provisório, continua subjacente:
— O colega é efectivo? Não? Então não devia estar a dirigir esta reunião!
— Vá-se queixar à direcção, que me nomeou!
Mas doía. E a prova é que não esqueci.)
Agora Nogueira com conversa parecida. Como se na formação para a profissionalização se aprendesse a não perder a cabeça! Como se a formação fizesse uma qualquer triagem segundo as competências científicas e pedagógicas, a adequação aos requisitos da profissão, à saúde mental, até!
Como se não houvesse no activo alguns profissionalizados que jamais deveriam estar à frente duma turma!
Como se as condições de trabalho em certas escolas não fossem suficientes para qualquer um se passar!
Não. O problema é que o colega, que até pode ser engenheiro informático, não tem a profissionalização.
Já quanto à agressão de Valença, feita por pai orgulhoso do feito, tanto que até organizou contra-manifestação com a tribo, nem uma palavra. Bater em funcionários e em professoras e professores, tal como em polícias, não tem idêntica gravidade. Não merece que se pronuncie.
Porque neste caso, seguramente, a culpa é dos agredidos. Mesmo se profissionalizados.

domingo, 13 de outubro de 2019

Pedantice

No supermercado, estendo uma alface para o empregado das pesagens:
— Bom dia! Pode-me pesar...
E ele, bem humorado:
— Sim, mas duvido que o senhor consiga subir para a balança!
Tenho mau feitio. E não gosto de ser corrigido por um mocinho ainda imberbe. Talvez para depois se gabar de ter gozado com o velho.
De modo que...
— Recorri à elipse, processo linguístico que permite omitir um constituinte frásico, reconstituível a partir do contexto. No caso vertente, como lhe estendi o saco com a alface, era óbvio que o objecto do pedido de pesagem, pelo que o não realizei foneticamente.

Assim mesmo, o discurso todo. Para que soubesse que ainda está muito verde para gozar com os velhotes.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Putas e vinho verde

Estava no início de carreira, professor provisório sem habilitação própria, miniconcursiano, como nos designavam pejorativamente os colegas já instalados, e coube-me horário nocturno.
A tentar esconder o pavor, olhei para aqueles alunos, todos mais velhos do que eu, e comecei a aula de apresentação. 
Ia talvez a meio do tempo lectivo quando aluno mal encarado, olhos turvos pelo nevoeiro, abre a porta da sala, entra e senta-se sem dizer água-vai nem água-vem.
Não ia perder a face logo na apresentação!
— Boa noite! 
Nem me olhou.
— Boa noite! E, já agora, manda a boa educação que ao entrar atrasado bata à porta, peça licença para entrar... Como o não fez, e já se instalou, quer apresentar-se?
Olhou-me com desprezo.
— O que eu quero é putas e vinho verde!
A turma, do major reformado da Força Aérea à freira do hospital vizinho, olha-me na expectativa.
E eu, em tom duro, aparentado uma coragem que bem gostaria de ter:
— Então enganou-se na porta, que isto não é nem taberna nem casa de putas! É uma sala de aula, e se quer ficar é para se portar com respeito e educação!
Deitou-me olhar assassino, do género lá fora ‘comezas’, levantou-se e foi embora.

Mas não: nem dessa vez, nem em nenhuma outra, fui espancado por alunos. E aquela ave nunca mais apareceu nas minhas aulas.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Do meu vinho e da minha escrita

Anos atrás, num dia em que se acabou o vinho na colectividade da minha terra, telefonou-me um sobrinho a perguntar se vendia um pote de 10 litros.
Não, não vendia. Dava. Que o fosse buscar.
Tempos depois, perguntei-lhe o que é que os entendidos, bebedores diários e inveterados, tinham achado da minha pinga.
Devia ter adivinhado: santos de ao pé da porta não fazem bom vinho, menos ainda o Zé, que nunca foi agricultor a sério, nem anda a cair de bêbedo nas noites de sábado; ainda se fosse descendente dos “ricos” da terra, ainda se o vendesse, que o dado não presta, nem permite dizer que não vale o que custou...
Não, aquilo não era vinho, sem o forte sabor do sarro dos tonéis, sem dose cavalar de metabissulfito — feito com toda a higiene, conservado em cuba de aço, não sabia a vinho!
Soube depois que o meu sobrinho, desgostoso, retirou o invólucro interior e colocou-o dentro de  embalagem de cartão da marca habitual. Aí beberam-no, ao que me parece sem mais protestos, excepto quando um dos habitués se queixou dias depois: Este vinho não é da... (a marca da caixa de cartão)!
Como é que sabes?
Deixei de cagar preto!
(O que tem isto a ver com os meus romances? Tudo. As editoras rejeitam-nos por razões análogas e preferem as cagadas. E depois queixam-se da falta de leitores.)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Uma história em ar

As três jovens saíram a passear.
Vamos no meu carro, tirei a carta e preciso de praticar.
Damos uma volta, paramos a lanchar.
E assim chegou a hora de regressar.
A condutora dá à chave, o motor de arranque soluça, sem força para fazer o motor pegar.
E agora, telefonamos ao teu marido para nos vir desenrascar?
Não, que vai ralhar. E gozar.
Empurramos o carro até àquela ladeira, pega de empurrão, e depois já podemos voltar.
Empurram duas, o carro move-se devagar, pára logo que solta a embraiagem. E já próximo da ladeira, diz uma para a condutora: Tens de vir também ajudar!
Empurram as três. O carro embala na descida, pega, aí vai ele a acelerar!
A pobre dona olha para as amigas, desconsolada: E agora? O meu marido vai-me matar!
Não, o teu carro é que vai matar aquela velha que vai a atravessar!
E em pânico, desatam as três a gritar:
Fuja, fuja minha senhora, o carro vai-a atropelar!
Lá ao fundo, a velhota olha, sem compreender, avista o carro que desce desembestado, apressa-se, o andarilho não ajuda, na aflição deita-o fora, em passinhos trôpegos corrica, chega à berma e trepa para o patamar.
Mas, entretanto, o carro, desviado por buraco, curvou e espatifou-se contra muro num estrondo de assustar.
E agora, como vamos regressar?
E que direi ao meu marido quando chegar?
Estão já junto do automóvel, dianteira espatifada, radiador a fumegar.
Olha, dizemos que foi o buraco que o fez estampar!

E nem estaremos a mentir, lá está o buraco para o provar!

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Chico Buarque

Estávamos em 1972, havia a guerra colonial, a agitação constante nas universidades, as manifs nas ruas que o regime não lograva impedir, a música que nos chegava de fora, Brel, Simon&Garfunkel, Donovan, Chico Buarque, Patxi Andion, por cá a de José Afonso.
O meu primo, então a frequentar o Conservatório, pediu-me que comprasse bilhetes para concerto que Chico Buarque ia dar num cinema entre os Restauradores e o Marquês, esqueci o nome. Quando lhe entreguei o bilhete, 
— Compraste também para ti?
— Não. Estou teso...
Insistiu para que comprasse, quis pagá-lo ele. Recusei, e voltei ao tal cinema. Comprei o mais barato, para o poleiro, o último balcão. E lá me sentei, a ver no palco figuras minúsculas que tocavam os primeiros acordes — o conjunto do Chico (hoje diz-se banda), o MPB4. Na sala, gigantesca, uma pessoa aqui, outra ali.
Então, chega funcionário a pedir para nós, os do poleiro, nos sentarmos na primeira fila, para que Chico Buarque não actuasse para cadeiras vazias. Tive, assim, oportunidade de assistir ao seu espectáculo juntinho a ele.
Excepcional. Mas com fraca assistência, nem a banda a passar colocou a sala ao rubro. E o cantor, a determinada altura, desabafou: não sabia se as suas músicas eram apreciadas em Portugal, mas no Brasil quase ninguém as conhecia. 
Pois, cá, fora do meio intelectual, apenas a banda a passar tinha chegado às massas, embora na rádio se ouvisse muita música brasileira, eu quero buzinar o seu calhambeque e quejandos.
Ainda bem que tudo mudou. Chico Buarque, que talvez fizesse suas as palavras (creio que) de Brel, algo como não sou poeta nem músico, faço canções — conheceu no Brasil e cá a glória merecida pelo seu talento, enorme e diversificado (letrista, músico, actor, escritor), e acaba de ser distinguido com o Prémio Camões.
E eu tive o privilégio, graças à insistência do meu primo, de o ter visto no palco, tão perto que quase lhe podia tocar, quando era jovem, antes da consagração, e de me ter embevecido com a sua genialidade e a dos músicos que o acompanhavam...
(A time it was, and what a time it was, it was
A time of innocence
A time of confidences
Long ago it must be
I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you
Simon&Garfunkel, Old Friends)

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Os raposinhos

Fui ensinado a recusar todas as dádivas de toda a gente que não pertencesse à família mais chegada. Por palavras, sobretudo pelo exemplo. Suponho que para não ficarmos “na obrigação”. Na desconfiança ancestral de que ninguém dá nada a ninguém desinteressadamente. 
Os olhos a aguar, a boca a salivar — mas não, não aceitava, muito obrigado, mas não quero, ou não gosto, ou agora não me apetece.
— Toma, vá lá, sou eu que te quero dar!
Escondia as mãos atrás das costas, olhos baixos, cabeça a menear negativamente, contrariando o coração, atormentando o pobre estômago, sempre tão carente de guloseimas.
Pobre e remendado, mas orgulhoso como faminto fidalgo espanhol.
De tempos a tempos, passava pela aldeia mendigo.
— Mãe, está ali um pedinte!
— Leva este punhado de batatas ao pobrezinho e diz-lhe que Nosso Senhor o favoreça!
O mendigo metia a pobre dádiva no saco de serapilheira por entre ladainhas de agradecimento, e ia bater a outra porta, de gente que não pedia nem aceitava esmolas, embora quase tão pobrezinha como ele.
Ora um dia apareceram-me à porta a pedir dois homens na força da idade, aspecto de cavadores. Aqueles não eram mendigos, bem no via pelo aspecto, e por serem dois. 
Ladrões?
Vendo-me paralisado pelo medo, à janela do primeiro andar, riram: não vinham roubar nada, andavam a pedir. E um deles abriu o saco de serapilheira, onde, em vez de batatas, feijões, maçãs ou cacho de uvas, havia uma ninhada de lindos cachorrinhos a ganirem tão tristes que de vê-los e ouvi-los se me partia o coração.
— Raposinhos, disse o homem. Matámos os velhos e estes em breve vão pelo mesmo caminho.

E, vendo que naquela casa se não safavam, os meus pais ausentes, eu dinheiro não tinha, e se o tivesse não o dava, seguiram rua fora, convencidos de que, como benfeitores da Humanidade, mereciam paga por exterminarem aquela praga — enquanto eu chorava de impotência e raiva por não ser grande e valente para salvar os pobres raposinhos do saco.

sábado, 6 de abril de 2019

Como apoucar factos

Perante o facto, inegável, de que há demasiadas relações de parentesco no actual governo, a sua central de contra-informação riposta, recordando relações análogas nos governos de Cavaco Silva. 
Nem sequer argumento com a oposição passado / presente, nem com a expectativa de ver os governantes actuais a procederem de forma diferente, de acordo com a tão propalada “ética republicana”.
Não. Prefiro recordar a velha história da velha que ensinava a filha: 
— Chama-lhes putas, filha, chama-lhes putas, antes que te chamem a ti!
Porque não se nega o facto. Apenas se diz dele ser prática comum.  E depois queixam-se do crescimento dos populismos, das extremas-direitas. O que esperam, se estão sempre a lembrar que, discursos à parte, a prática dos políticos se revela, afinal, igual quando está em causa a defesa dos seus privilégios e interesses mesquinhos?

É para isso que pedem o nosso voto? Para fazer igual àqueles que criticam?

sexta-feira, 15 de março de 2019

Diálogo de surdos

Sábado, na esplanada de um restaurante em pequena cidade da província.
— Vanessa, esta tarde preciso de ti no salão!, diz a mãe para a filha, moça dos seus dezassete anos.
— Não há nada para eu fazer!
— Só que atendas quem chega, já me ajudas muito.
Amuada, a jovem, virou a cara para o lado: — Porque é que me não avisaste antes?
— Sabes bem que a mãe precisa de ajuda.
O pai mete-se: — Vanessa, porque é que não vais ajudar a tua mãe?
— Agora vou para a Biblioteca, tenho lá os meus amigos.
— Não são os teus amigos que te dão de comer.
— É sempre o mesmo. Só me dizem quando tenho outras combinações!
— Tens a semana toda para estares com eles. Porque é que não estiveste com eles hoje de manhã?
— Porque estive a aspirar, a arrumar, a passar a ferro…!
— Não querias que a tua mãe fizesse isso depois de sair do trabalho, à noite?
— Queria era que me dissesse com tempo quando é que precisa de mim. E aquilo é uma seca. Não tenho nada, nada, que fazer!
— Se aparecer alguma cliente, a tua mãe não precisa de largar o que está a fazer.
— Deixa lá, diz a mãe, e aponta a expressão da filha: — Não quero ninguém a receber as clientes com estas trombas.
— Tenho voleibol às quatro!, diz, lágrimas a correr pelo rosto.
Passa o tio, dono do restaurante, e manda-a tirar os pés de cima da mesa: 
—Isso é para fazeres lá em casa!
— Em casa, o pai não deixa!
— Ah, estava a ver que te não dava educação!

Momentaneamente, fico a sós com o pai da moça: — Isto é um problema, gerir conflitos constantes entre mãe e filha. A mãe fica lixada por a Vanessa a não ajudar, a Vanessa reponde-lhe com duas pedras na mão…

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Outros tempos

O S. era um velho implicativo, quezilento, amigo de armar zaragata por ofensas reais ou imaginárias. E passava o tempo a sacanear os outros, por maldade, e para se vangloriar das partidas pregadas.
Ora um dia veio,  humildemente, pedir ao dono do café e padaria, malandro como ele, o favor de lhe guardar metade dum cabrito na arca congeladora: 
— Bem vês, tive de o matar e só para a mim e para a patroa é carne demais... Se mo puderes guardar umas semanas, até à Páscoa...
E rematou, desconfiado: — Mas não  lhe tiras bocado, pois não?
— Por quem me tomas? Achas que preciso da tua carne para alguma coisa?
— Bem, sendo assim, deixo-o à confiança, venho buscá-lo para a Páscoa! E agradeceu muito o favor.
Ele a virar costas e o padeiro a passar palavra: — Logo à noite apareçam e tragam o vinho, que a ceia ofereço-a eu, é cabrito assado no forno!
Bela patuscada, bem regada, acompanhada com pão quente acabado de sair do forno. 
Chegou a hora da gabarolice. 
— Sabem de quem era este cabrito?
Pois não sabiam. Mas riem já, pressentindo partida  pregada a infeliz.
— Do S. 
Espanto geral. Como é que tinha conseguido passar a perna a esse sacana, tão desconfiado, tão matreiro?
—Veio-me pedir para guardar na arca meio cabrito esfolado, amanhado, prontinho a assar, só precisei de temperar!

— Mas ele não tem cabritos! Viste a cabeça do animal? Não? Ai o cabrão! Foi mas é o cão que lhe morreu ontem!