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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Suave milagre (1)

 

Suave milagre (1)

Aquele meu familiar vivia por uma única razão: o medo de morrer. Ou assim me parecia, nas cada vez mais raras vezes que o visitava, falto de paciência para as suas lamúrias constantes, a viver desinteressado de todos os outros, do mundo à sua volta, tendo por único assunto de conversa as suas doenças, recorrentes e cumulativas, as suas dores, a sua pessoa. De início, tentava animá-lo, insistia para que saísse, pelo menos até à porta, a ver o Sol primaveril, a tomar umas golfadas de ar limpo. Não. Uma pessoa de idade constipa-se facilmente, há que se resguardar. Mas constipações não são doença grave, argumentava eu para ouvir raspanete: quem as tem é que sabe delas! E se lhe chamava a atenção para a necessidade de arejamento, físico e mental, de exercício, de pequeno passeio diário, até à esquina que fosse, rebatia-me impaciente: estava frio, podia apanhar gripe, sempre perigosa em pessoa de idade, e sim, quando viesse o tempo bom, já sem perigo de adoecer, então sairia, então daria os seus passeios – que eu nunca fui preguiçoso!, culminava indignado. E eu pensava: como mudamos, naquilo em que nos tornamos, como os anos transformaram este meu amigo de amante da vida ao ar livre a velho que passa os dias na cama porque levantado tem dores, desinteressado da vida de que, no entanto, recusa abdicar. E toda a conversa, toda a minha argumentação caía em saco roto, porque com a manha que os anos trazem, qualquer tentativa de o forçar a mudar de atitude resultava em gritos de dor, sufocos assustadores, ameaças até: quando passares pelo mesmo vais ver como é! Tentava calar as minhas censuras com mentiras ingénuas: não atendera o telefone porque estava longe e não o conseguira alcançar, não fizera o que lhe recomendara porque se esquecera, já me esqueço das coisas, será princípio de Alzheimer?

Creio que assim supunha enganar também a Morte, escondido dela em casa. Afinal, com tantos clientes à espera, bem se podia esquecer dele. E pelo sim, pelo não, mantinha de noite as lâmpadas acesas, que Morte é escuridão, é trevas, não o procurará na luz intensa. Receoso de morrer em falha de iluminação provocada por trovoada, acordava amiúde, para confirmar que as luzes continuavam acesas, que a Velha se não aproximara sub-repticiamente, capuz negro sobre a caveira, sarcasmo trocista a brilhar nas órbitas vazias, longa foice ensanguentada ao ombro. Espantava as visitas, gente do seu tempo que o procurava ainda para dois dedos de conversa, temeroso das respectivas doenças e dos germes que seguramente carregavam consigo, impaciente também com as suas conversas: como se atreviam a vir falar com ele de dores, a lembrar que também sofriam de maleitas, a dizer que um ou outro tinha estado já às portas da morte? E a recordar que havia quem estivesse bem pior? Era uma ofensa, era um escândalo, quase uma calúnia supor sequer que alguém tinha ou alguma vez tivesse sofrido como ele, e encolhia os ombros se lhe recordavam, prova suprema, que o outro até tinha morrido. Pois sim, nunca se poupara, sempre a comer bem e a beber melhor, nunca se resguardara de aragens e de micróbios, nunca tivera o devido cuidado com a saúde, com a tensão, com o colesterol, com outras causas conhecidas de falecimento. Pois ele, medicamentos para tudo, inclusive para proteger o organismo dos malefícios de outros dos remédios. E sempre a exigir a vinda do médico de família ao domicilio, era o que lhe faltava estar no Centro de Saúde sujeito a resfriados, a contaminações desses velhos e velhas que para lá vão fazer salão, passar tempo, actualizar conversas. Não ele: se chamava o doutor é porque precisava, e não sossegava enquanto, bem tarde, lhe não entrasse porta adentro, trocista, Ora o que é que temos hoje?, sempre pronto a minimizar as maleitas, a rir delas. Enfim, essa besta, apesar de tudo, receitava-lhe medicamentos às sacadas, cada vez maiores, de que, bem o sabia, carecia para se manter vivo, no seu reduto inexpugnável e camuflado: se a Morte o não via, se não deixava entrar germe que a avisasse da sua existência, se, além do mais, se resguardava, uma vida inteira sem fumar, sem beber, sem abusar da comida, colesterol e glicemia sempre vigiados, tensão controlada, porta fechada a gente linguaruda que o lembrasse da Velha Ceifeira não morreria. E zangava-se comigo, quando lhe recordava que aquilo não era vida, que para viver temos de aceitar a possibilidade de morrer. Lérias. Que falava assim por ser muito novo.

Pois numa bela manhã de sol primaveril, a porta entreabriu-se suavemente, e voz meiga falou-lhe sorrindo meigamente:

Estou aqui!

(1) inspirado no conto homónimo de Eça de Queirós.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Pisar o risco

Diz-se que a indisciplina, o mau comportamento e a má educação nas escolas, a violência para com os professores, começaram com a liberdade trazida pelo 25 de Abril.

Não é esse o meu entendimento, baseado na minha experiência de aluno. Por exemplo,  no liceu de Leiria, nos anos sessenta, não faltava quem tentasse pôr o pé em ramo que sentisse verde, assim o permitissem os professores.

Aquela turma de quarto ano tinha dois professores deficientes: o de Inglês, cego, mas com esse ninguém fazia farinha, que era mau como as cobras e, mesmo não vendo, via tudo o que se passava; e a de Matemática, surda como uma porta.

Nas suas aulas, um regabofe pegado da entrada ao toque de saída. E não era só a falação constante; uma das graçolas recorrentes consistia em deixar cair como por acidente a esferográfica, e, apontando para ela,

—Stôra, posso tocar uma punheta?

— Apanha lá a caneta!

Vendo a risota geral, a balbúrdia instalada, que em vão tentava debelar, a professora pensaria, talvez, que outra vez tinha sido gozada. Mas fingia de nada se aperceber.

Até que…

Logo no início da primeira aula do segundo período, o mesmo aluno, a repetir a graçola estafada:

— Stora, posso tocar uma punheta?

— Rua, já! E levas participação disciplinar, de uns dias de suspensão não te livras, seu parvalhalhão mal educado!

Ninguém se atrevia a rir. Ninguém repetiu as asneiras costumeiras. 

Instantaneamente, todos tinham percebido que nas férias de Natal a professora havia posto aparelho auditivo. 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Meter uvas

Vindima. Chega mais uma tina de uvas à adega, o carreiro pega em forquilha e começa a despejá-las para tabuleiro que entra pela janela, escorregam para o esmagador, movido a braços, acumulam-se noutra tina onde um homem enche o poceiro de madeira, carrega-o sobre o ombro, protegido por saco de serapilheira, trepa por escada de madeira, e deita as uvas e os engaços num tabuleiro atrás do qual um garoto, escarranchado no tonel, a cabeça a roçar o tecto da adega, se afadiga, empurrando com as mãos polpa pegasoja e engaços para o funil encaixado no batoque.

Não tem mãos a medir o garoto.

Eu. Sessenta anos atrás. 

Contratado para meter uvas a, se bem me lembro, quinze tostões a tina – uma fortuna, para quem recebia aos domingos cinco tostões.

Tina após tinha, que o ano tinha sido produtivo, esforçava-me para não ficar mal visto, os dedos esfolados nas arestas de metal do funil, saturado daquele trabalho monótono e cansativo para garoto “relezico”,  o pensamento na jorna que receberia – e, no final da manhã já tinha metido seis tinas de uvas!

A caminho de casa, na breve pausa para almoço, a que então chamávamos jantar, encontrei um primo, uns anos mais velho. Orgulhoso, gabei-me do que já tinha ganho: nove escudos! E de tarde ganharia certamente outro tanto ou até mais!

A inveja, coisa feia, atacou esse meu primo: Ganhaste o quê?, para isso era preciso que ele te pagasse!

A dúvida instalou-se na minha cabeça, agravou-se com a chegada de um jovem tio meu, que ajudou à festa: o dono das uvas era caloteiro, tinha fama de não pagar a ninguém… Fazem essas promessas aos garotos, mas depois nunca as cumprem!

Amargurado, quase a chorar, decepcionado, segui para casa, sem vontade de cumprir o resto do contrato. 

Pouco depois, encontrei o meu pai. E eu, já em lágrimas, contei-lhe o meu drama: não ia trabalhar mais porque depois o homem não me pagava.

O meu pai não me ralhou. Argumentou, quase como se me pedisse que cumprisse a minha parte do aprazado. O dia de pagamento era ao sábado, que voltasse para o trabalho, o homem era sério, havia de cumprir a sua parte, tal como eu, já um homenzinho, tinha de cumprir a minha. 

Lá voltei, duvidoso, para as uvas, tentando ignorar as caretas de troça que uma vez por outra o meu primo me fazia à porta, a escarnecer deste pobre escravo enganado, a trabalhar em vez de brincar, para no final nada receber.

Doze tinas de uvas metidas até ao final do dia. E no sábado seguinte, o dono das uvas foi a minha casa pagar-me a jorna, como combinado. Dezoito escudos que deram entrada no meu “migalheiro”, como chamávamos ao mealheiro, talvez por habitualmente só lá entrarem migalhas na forma de um ou dois tostões de cada vez.

Foi assim que aprendi o valor da palavra dada. Por ele e por mim.


terça-feira, 17 de agosto de 2021

Catarata

Uma cirurgia a catarata no olho direito, feita no sábado passado, força-me à inactividade pelo menos até à próxima sexta-feira, dia da consulta. Ainda sem óculos adequados, o desequilíbrio provocado pelo desencontro entre a visão de cada um dos olhos é deveras perturbador.

Tudo aquilo que se costuma sugerir a quem se queixa de nada ter para fazer – ler, ver filmes, passear, ir à praia – ou o que eu costumava fazer, como trabalhar na horta e no campo, andar de mota, bricologe, cozinhar, limpar a casa, exercitar-me fisicamente, me está vedado, devendo evitar a luz do Sol, o vento, o pó, e não baixar a cabeça, levantar pesos ou fazer esforços.

Uma semana de tédio profundo, portanto. E depois, logo se verá, conforme o que o médico disser.

Resta-me o descanso. Que eu só aprecio quando cansado.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Na loja da aldeia

 – Vai-me à loja comprar fósforos!

Uma corrida, e estava lá, pois ficava ao virar da esquina. Chão pavimentado em frente, ardósia negra, quente, na frontaria, loja enorme, aos meus olhos de criança, À esquerda, o posto de correios, o Diário de Notícias aparafusado a ripa de madeira sobre o balcão em L; a seguir, os panos e materiais de costura, ao fundo, por detrás do balcão com a balança, a faca do bacalhau, os papéis de embrulho, ficavam as tulhas do arroz, da massa, do açúcar, as prateleiras com produtos de drogaria, de loja de ferragens, de tudo um pouco. No ar, leve cheiro a sabão azul acabado de cortar, a cloreto. Atrás, porta que dava para a taberna, cujos fregueses entravam por estreito corredor acimentado, onde ficava a máquina de venda de petróleo.

A empregada, a Cesaltina, destoava da rudeza campestre pelos seus bons modos, simpatia, presença elegante. De fora da terra, não estava contaminada pelas guerras e más relações indígenas.

– Quando veio para cá, contava a minha avó, parecia uma bonequinha, vestida com o traje das valadeiras, que é parecido com o das pexinas (peixeiras da Nazaré).

Cresceu atrás do balcão, por todos estimada. Quando a minha irmã e a minha prima brincavam às lojas, discutiam por vezes: – Eu sou a Cesaltina…

– Não és nada, hoje sou eu, que tu foste ontem!

E a Cesaltina pergunta-me o que quero, interrompendo a conversa com freguesas que escolhiam panos. Aviado, estendo-lhe os vinte e cinco tostões e abalo a correr.

– Espera aí, toma o troco!

Era torcido. Convencido, sabichão, parvo a mais não poder ser.

– Não quero!

– Mas tens de levar o troco!

– Não quero! A minha mãe não mo mandou levar!

E já chegava a casa, bofes à boca como sempre, estendo as compras à minha mãe,

– E o troco?

– Troco? Mas não mo mandou trazer!

– Já buscá-lo!

Os modos da minha mãe cortaram rente a minha resmunguice.

Foi devagar, cabisbaixo, que voltei à loja e à Cesaltina:

– A minha mãe mandou-me buscar o troco…

Ela olhou para as outras mulheres enquanto retirava o dinheiro da gaveta:

– Agora não to havia de dar…, dizia, enquanto me contava as moedas para a mão.

domingo, 25 de abril de 2021

Jumento, asno, burro

 Aí por 1962 ou 1963, o meu tio Emílio construiu uma guitarra: uma lata de atum redonda, cordas, o resto em madeira. Uma obra de artista, como ele era com as mãos, e eu acompanhava embevecido a construção e os testes, quando ele, que não saberia muito mais de música do que eu, ou seja, nada, a afinava. Pensava eu que ele iria começar uma carreira de músico amador, aprendendo a tocar o instrumento e, talvez, formando conjunto musical, Jazz, dizíamos então, à semelhança do lendário jazz da terra, Os Gaiatos, que animou as festas meio século atrás.

Estava enganado. A bela guitarra, finamente trabalhada, tinha outro propósito, como descobri no dia de Entrudo, ao vê-lo mascarado, cabeça tapada como os Entrudos usavam para que os não reconhecessem, montar a burra, numa mão a arreata, na outra, em vez do bordão carnavalesco, a guitarra. E juntou-se a bando de rapazes, todos a cavalo em burros e burras, desfilando pela estrada principal, tangendo violentamente as cordas do instrumento supostamente musical.

Para nós, a garotada da terra, que corríamos eufóricos atrás da cavalaria fandanga, aquele era o melhor dos entrudos, e para aumentar a animação, tentávamos espantar os burros, enquanto os cavaleiros, agarrando-se às albardas para não tombarem, nos tentavam atingir com os varapaus, e nós gritávamos, e esbracejávamos, a evitar os ataques, a tentar fazê-los cair.

Nas bermas, o povo ria e tentava identificar os vultos encapuçados, a partir dos animais que montavam, mas alguns, prevendo-o, tinham trocado entre si de animais.

Já a festa cansava quando se aproximaram da Associação Recreativa, que funcionava então na adega do dr. Amílcar. Dentro, tinha sido organizado Carnaval reservado a sócios, com artista, talvez da rádio, a que chamávamos então telefonia. E o meu tio, reconheci-o pela burra e pela guitarra, guiou afoito a montada para a porta, tentando forçar a entrada.

Não vi a confusão interior, mas ouvi, pelo microfone, o artista a vociferar: Aquele é ainda mais jumento que o asno que monta!

Palavras novas, que nunca mais esqueci, para animal a que sempre chamei burro. Pouco depois, os entrudos dispersaram, talvez a vestirem-se para a festa da Associação, que não haveriam de querer perder. Ainda fiquei nas imediações, a ouvir as cantorias que escoavam pela porta, mas escurecia, e as ordens severas do meu pai eram terminantes: As galinhas no poleiro, e tu em casa! , pelo que corri a tentar chegar antes dele, livrando-me de umas cinturadas pelo atraso...

terça-feira, 30 de março de 2021

Sim, todos nos reuniremos junto ao rio

(No original, Yes, We’ll Gather at the River , in Vozes de Marte (I sing the body electric), Ray Bradbury, Argonauta)

Ou quase todos.

Pelos caminhos ficaram aqueles a quem o destino interrompeu a caminhada. A esses, resta-nos o fraco consolo de os lamentar, talvez chorar, recordá-los com nostalgia quando um qualquer acontecimento os trouxer de novo à nossa memória.

E os outros, também cada vez mais numerosos, que, obcecados com um qualquer fundamentalismo, se deixaram paulatinamente cegar pelo ódio ao outro – a quem chamam esquerdófilo, ou direitolas, ou comunista, ou fascista, racista, preto, cigano, assassino de animais, covideiro, negacionista…

Estes ódios, que sempre existiram, não nos impediam num passado ainda muito recente, de conviver civilizadamente, deixando a cada um a escolha das companhias com quem jantava, das que levava para casa. Mas, fora do seu círculo íntimo, não insultava desconhecidos, não cortava relações com familiares e vizinhos apenas por terem diferente visão do mundo ou da sociedade.

Vivia-se e deixava-se viver. Discutia-se, acaloradamente que fosse, discordava-se, contestava-se. A ideia, não a pessoa.

Agora é diferente. Tenho para mim que a maior parte dos desaforos provém de solitários desocupados, que por isso mesmo não precisam da hipocrisia que mantém vivas as relações sociais, e, não sabendo o que hão-de fazer à puta da vida, na puta da vida, levantam-se azedos e azedas, após noite mal dormida a remoer, e logo correm para os computadores a insultar quem pensa diferente, a procurar impor a sua lei e a sua justiça neste mundo, para eles canalha, cheio de gentalha ignóbil, ou, quando o vocabulário lhes escasseia tanto como as ideias, porcos: porcos fascistas, porcos comunistas, porcos machistas, porcos xenófobos… Tudo uma porcaria, obviamente, porque é só o que pode sair das suas mentes.

É nas redes sociais, acobertado no quase anonimato e sobretudo na distância física que afasta a cara da chapada justiceira, que encontramos o discurso do ódio na sua forma mais pura, o seu léxico e os seus agentes, de todas as cores políticas e de pele. Lendo nas entrelinhas, por detrás do ódio que por jorra como enxurro, são espaços fascinantes, imprescindíveis para o conhecimento do modo de vida, da mentalidade, quiçá da solidão, da amargura que é a vida quotidiana de uma geração – a que também eu pertenço.

A pandemia exacerbou os ânimos. Quando tiver passado, todos nos reuniremos junto ao rio – menos os indesejáveis, pelo que seremos a mão-cheia de sempre: aqueles que se não melindraram com alguma chamada de atenção desajeitada, que se não ofenderam com discordâncias talvez mal expressas, que não cortaram relações connosco por termos visão diferente da sociedade, que não nos repudiaram por não alinharmos entusiásticos em indignações justiceiras primárias e indignas de pessoas bem formadas, nem em denúncias e perseguições pidescas.

Junto ao rio? Proponho na minha adega, nos Montes, terra que foi de muito vinho e poucas fontes, e não tem rio nenhum. Entre boa comida, o vinho da casa, a boa companhia, com a suprema alegria de estarmos vivos e entre amigos.

Sim, todos nos reuniremos junto ao rio.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Um garoto do meu tempo

 Um garoto do meu tempo. Eu mesmo, penetra na minha ficção.

“Porém, o Chico não é o mata-mouros que o pai pinta: a caminho dos onze anos, ainda tem de guerrear quando o enxovalham publicamente, por terem visto a assoalhar lençol e cobertores: — Mijão! Ainda mijas na cama! 

Bem o tenta evitar, mas invariavelmente, sempre rente à madrugada, sonha que está aflitíssimo e então no seu sonho vê parede discreta onde pode escrever a urina o seu nome, começando com um enorme F maiúsculo em caprichado cursivo inglês, ou encontra poço empedrado, largo e fundo, que amplifica e dá corpo ao som do jacto que tomba em curva tensa, ou avista canastra de chicharro que a peixeira pousou durante a venda — e alivia-se com o prazer duplo da partida que prega e do despejo da bexiga, acordando encharcado pela urina quente e, não raro, pelas palmadas da mãe, que inutilmente madruga para evitar a desgraça, mas só chega a tempo de aplicar o correctivo à incontinência matinal...

Tem medo do escuro e frequentemente as histórias de terror que ouviu durante o dia apavoram-no durante a noite; então, inventa desculpas para aparecer a desoras no quarto dos pais, queixando-se, talvez, de dor de barriga. O pai ralhará, não apenas pelo sono estragado, mas porque é bem feito, já lhe disse que o não quer a roubar fruta, quanto mais vir ainda queixar-se dos desarranjos que ela lhe causa...

Ah, mas durante o dia, a sua ousadia não conhece limites: é capaz de trepar ao alto do mais alto dos pinheiros, balançando perigosamente, só para tirar ninho de rola; desce afoito por uma corda ao fundo de um poço fundo, sem receio das sanguessugas que o aguardam, para capturar enguia que lá tenha engordado durante anos; obriga a pobre da burra a cavalgar como uma égua se passa montado pelo Jogo ou se há raparigas a vê-lo; implora a carreiros com quem tem alguma confiança, como o Tio José Emílio, para que o deixem conduzir a junta de bois; salta eufórico do terraço do alambique do José Salgueiro, a uns bons quatro metros de altura, para cima do folhelho da queima, às vezes agarrado a um guarda-chuva ou improvisando uma asa com um saco de serapilheira esticado entre os braços... O Tio Zé Catrino, que foi primeiro sargento no exército, diz-lhe frequentemente, vendo a sua atracção pelas alturas e o gosto com que salta, invejando as aves: — Quando fores à tropa, hás-de ser aviador! Embevecido, o moço escuta interessadamente histórias da sua vida militar, como a do piloto que se despenhou espalhando o seu corpo por uma zona tão grande que para lhe fazerem o funeral foi preciso procurar os pedaços por todo um pinhal.”

Entre Cós e Alpedriz, www.amazon.es

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

De e com (muito técnico)

 A discussão que a pandemia trouxe em torno das preposições de e com (e.g., morrer de Covid, morrer com Covid) recordou-me desta comunicação que apresentei em 2004 na Associação Portuguesa de Linguística (APL), escrita em colaboração com a minha amiga Cláudia.

Preparava então o doutoramento em Linguística Computacional, na Faculdade de Letras de Lisboa, de que viria a desistir após conclusão com aproveitamento da parte curricular por razões que noutra ocasião talvez explicite, adiantando desde já que a recepção desta comunicação muito contribuiu para isso: as sumidades, que tinham assistido à comunicação de uma protegida, saíram todas da sala antes que eu começasse, deixando-me a fazer a apresentação para pouco mais que cadeiras vazias…

Aí vai a Introdução do artigo, publicado nas actas da APL:


Em torno de preposições causativas

José Cipriano Catarino e Cláudia Pinto

Escola Secundária do Entroncamento / Priberam Informática

Introdução

Este artigo debruça-se sobre algumas questões em torno da semântica das preposições, classe fechada de palavras gramaticais invariáveis, cuja elevada frequência de uso e natureza polimórfica tornam o seu significado difícil de precisar.

No cerne deste estudo encontram-se as preposições de e com, que estão certamente entre aquelas cujo conteúdo semântico é mais difícil de captar, como pode ser constatado através da consulta de alguns dicionários de língua. Em algumas destas obras elas são tratadas como meros conectores lógicos, servindo essencialmente de elementos de ligação entre dois sintagmas. Alguns autores, como Schyn 2001, consideram estes conectores preposições incolores, por oposição às preposições coloridas, aquelas cuja semântica é facilmente demarcável.

Contudo, e tendo por base o comportamento destas duas preposições em enunciados causativos, no presente estudo argumenta-se no sentido de que (i) estas preposições têm conteúdo semântico e (ii) a respectiva selecção depende das propriedades do evento.1

Neste trabalho, que se enquadra no modelo do Léxico Generativo (Pustejovsky 1991, 1995), procede-se ao estudo das restrições que condicionam a ocorrência dos SPs causativos introduzidos pelas preposições de e com em enunciados causativos. Mais precisamente, argumenta-se no sentido de que a selecção destas preposições é condicionada pela estrutura eventiva.

Interpretação causativa dos SPs

As entidades causadoras de um determinado estado de coisas são normalmente realizadas sintacticamente como sujeitos: O João saiu, O cão ladra ao carteiro, O vento fechou a porta. Em enunciados deste tipo, um eventual SP não tem interpretação causativa, exprimindo frequentemente o modo, como nas frases (1) – (3):

    1. O João saiu de mansinho / com pressa.

    2. O cão ladra ao carteiro com raiva.

    3. O vento fechou a porta com força.

Vejam-se agora as frases de (4) – (6):

    1. O João morreu de fome / com fome.

    2. A bomba explodiu com o impacto.

    3. A água ferveu com o calor.


Em enunciados como os exemplificados em (4) – (6) fome, impacto e calor são, respectivamente, a causa do estado de coisas a que cada um dos eventos se reporta.

O contraste entre estes dois grupos de frases evidencia que em (1) – (3) os causadores do estado de coisas são realizados sintacticamente como sujeitos, o que não sucede nas frases com SPs causativos (4) – (6), em que se verifica uma dissociação entre função semântica e função sintáctica, visto que os sujeitos sintácticos não são os causadores dos estados de coisas.

Estes SPs ocorrem tipicamente com verbos inacusativos (morrer e explodir, nos exemplos (4) e (5)) ou com as variantes inacusativas de verbos que participam na alternância causativa, como ferver, no exemplo (6).

Nos exemplos de (4) – (6) os verbos de mudança de estado são, de acordo com a tipologia eventiva de Pustejovsky, núcleos de transições, eventos télicos (com um intervalo temporal fechado) ramificados em dois subeventos distintos. Tal não surpreende, pois a presença de uma entidade causadora pressupõe a existência de um evento final diferente do inicial.

Os SPs causativos podem também ocorrer em processos, eventos atélicos (com intervalo temporal aberto), ramificados numa sequência de subeventos idênticos, nos quais pode existir alguma mudança de estado, mas não um estado final resultativo, como em (7):

    1. O João sorri de felicidade.

Os SPs causativos não ocorrem em estados, como em O João ama a Maria, visto que são eventos atómicos, sem alterações na sua estrutura interna, pelo que nada é causado. Consequentemente, eventuais SPs não são interpretados como causativos, exprimindo, por exemplo, o modo:

    1. O João ama a Maria com paixão.

O estudo centra-se, portanto, em eventos do tipo processo e transição e adopta a decomposição dos eventos em subeventos, proposta em Pustejovsky, a qual permite incluir nas suas representações semânticas informações sobre a ordenação temporal e as restrições de dominância.

Atendendo à ordenação temporal dos subeventos (e1 , e2 ), podem ser consideradas três tipos de relação: precedência, ([e1 < e2]), como em O vento fechou a porta; simultaneidade, ([e1  e2]), como em O João casou com a Maria; precedência com simultaneidade, ([e1 < e2]), como em O João caminhou até casa. A relação temporal de precedência é aquela que melhor caracteriza os enunciados causativos em estudo.

As restrições de dominância são expressas em Pustejovsky assumindo que nos eventos complexos (i.e., ramificáveis) um dos subeventos assume normalmente proeminência relativamente ao outro. Assim, em O vento fechou a porta é a acção da entidade vento que é mais saliente; em A porta fechou-se é o estado final que sobressai.

Nesta perspectiva, uma transição como O vento fechou a porta pode ser ramificada em dois subeventos, ordenados temporalmente, para dar conta da alteração de situação da entidade porta, que, devido à acção de um causador, passou de "não fechada" a "fechada" (Figura 1).

1 O termo evento é aqui considerado no sentido de Tenny 1987: “uma situação ou acontecimento denotado por V, e em que participam os seus argumentos”. Apud Marrafa 1993: 26.