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sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Suave milagre (1)

 

Suave milagre (1)

Aquele meu familiar vivia por uma única razão: o medo de morrer. Ou assim me parecia, nas cada vez mais raras vezes que o visitava, falto de paciência para as suas lamúrias constantes, a viver desinteressado de todos os outros, do mundo à sua volta, tendo por único assunto de conversa as suas doenças, recorrentes e cumulativas, as suas dores, a sua pessoa. De início, tentava animá-lo, insistia para que saísse, pelo menos até à porta, a ver o Sol primaveril, a tomar umas golfadas de ar limpo. Não. Uma pessoa de idade constipa-se facilmente, há que se resguardar. Mas constipações não são doença grave, argumentava eu para ouvir raspanete: quem as tem é que sabe delas! E se lhe chamava a atenção para a necessidade de arejamento, físico e mental, de exercício, de pequeno passeio diário, até à esquina que fosse, rebatia-me impaciente: estava frio, podia apanhar gripe, sempre perigosa em pessoa de idade, e sim, quando viesse o tempo bom, já sem perigo de adoecer, então sairia, então daria os seus passeios – que eu nunca fui preguiçoso!, culminava indignado. E eu pensava: como mudamos, naquilo em que nos tornamos, como os anos transformaram este meu amigo de amante da vida ao ar livre a velho que passa os dias na cama porque levantado tem dores, desinteressado da vida de que, no entanto, recusa abdicar. E toda a conversa, toda a minha argumentação caía em saco roto, porque com a manha que os anos trazem, qualquer tentativa de o forçar a mudar de atitude resultava em gritos de dor, sufocos assustadores, ameaças até: quando passares pelo mesmo vais ver como é! Tentava calar as minhas censuras com mentiras ingénuas: não atendera o telefone porque estava longe e não o conseguira alcançar, não fizera o que lhe recomendara porque se esquecera, já me esqueço das coisas, será princípio de Alzheimer?

Creio que assim supunha enganar também a Morte, escondido dela em casa. Afinal, com tantos clientes à espera, bem se podia esquecer dele. E pelo sim, pelo não, mantinha de noite as lâmpadas acesas, que Morte é escuridão, é trevas, não o procurará na luz intensa. Receoso de morrer em falha de iluminação provocada por trovoada, acordava amiúde, para confirmar que as luzes continuavam acesas, que a Velha se não aproximara sub-repticiamente, capuz negro sobre a caveira, sarcasmo trocista a brilhar nas órbitas vazias, longa foice ensanguentada ao ombro. Espantava as visitas, gente do seu tempo que o procurava ainda para dois dedos de conversa, temeroso das respectivas doenças e dos germes que seguramente carregavam consigo, impaciente também com as suas conversas: como se atreviam a vir falar com ele de dores, a lembrar que também sofriam de maleitas, a dizer que um ou outro tinha estado já às portas da morte? E a recordar que havia quem estivesse bem pior? Era uma ofensa, era um escândalo, quase uma calúnia supor sequer que alguém tinha ou alguma vez tivesse sofrido como ele, e encolhia os ombros se lhe recordavam, prova suprema, que o outro até tinha morrido. Pois sim, nunca se poupara, sempre a comer bem e a beber melhor, nunca se resguardara de aragens e de micróbios, nunca tivera o devido cuidado com a saúde, com a tensão, com o colesterol, com outras causas conhecidas de falecimento. Pois ele, medicamentos para tudo, inclusive para proteger o organismo dos malefícios de outros dos remédios. E sempre a exigir a vinda do médico de família ao domicilio, era o que lhe faltava estar no Centro de Saúde sujeito a resfriados, a contaminações desses velhos e velhas que para lá vão fazer salão, passar tempo, actualizar conversas. Não ele: se chamava o doutor é porque precisava, e não sossegava enquanto, bem tarde, lhe não entrasse porta adentro, trocista, Ora o que é que temos hoje?, sempre pronto a minimizar as maleitas, a rir delas. Enfim, essa besta, apesar de tudo, receitava-lhe medicamentos às sacadas, cada vez maiores, de que, bem o sabia, carecia para se manter vivo, no seu reduto inexpugnável e camuflado: se a Morte o não via, se não deixava entrar germe que a avisasse da sua existência, se, além do mais, se resguardava, uma vida inteira sem fumar, sem beber, sem abusar da comida, colesterol e glicemia sempre vigiados, tensão controlada, porta fechada a gente linguaruda que o lembrasse da Velha Ceifeira não morreria. E zangava-se comigo, quando lhe recordava que aquilo não era vida, que para viver temos de aceitar a possibilidade de morrer. Lérias. Que falava assim por ser muito novo.

Pois numa bela manhã de sol primaveril, a porta entreabriu-se suavemente, e voz meiga falou-lhe sorrindo meigamente:

Estou aqui!

(1) inspirado no conto homónimo de Eça de Queirós.

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