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quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Problemas conjugais

Naquela casa, os conflitos são frequentes. Ao contrário do habitual,  não é o dinheiro, nem a educação dos filhos, ou a interferência dos pais de um ou de outro que os desencadeia. É o uso da língua. Por exemplo, ele conta um problema do seu trabalho:

— Vi-me em papos de aranha…

E logo a mulher o corrige:

— Não é em papos, mas em palpos. As aranhas não têm papos!

Ele detesta ser corrigido. Sobretudo quando crê que tem razão.

-- Quero lá saber se as aranhas têm papos ou palpos! Nunca ouviste falar em metáforas?

— Não desvies a conversa. Sabes muito bem que eu tenho razão. Como sempre.

— Pois, tu tens sempre razão. E sabes sempre tudo.

— Não sei sempre tudo, mas sei que as aranhas têm palpos e não papos.


Passeiam no parque de uma cidadezinha de província:

— Olha, um círculo viçoso!

E ela, sem olhar sequer: –  Não se diz círculo viçoso mas sim círculo vicioso! 

— Não, é um círculo viçoso!

— És tão casmurro! E queres sempre ter razão, mesmo sabendo que a não tens!

— Então olha, e diz-me o que é aquela figura geométrica, redonda e coberta de relva verdinha?


— E depois veio a ovelha ranhosa do Oliveira…

— Ovelha ronhosa, queres tu dizer!

— Sei muito bem o que quero dizer. O Oliveira é um ranhoso dum graxa, que na presença da patroa se põe a balir mansamente, com olhos de carneiro mal morto…

— Então porque é que disseste ovelha e não carneiro?

— Não sabes que quando se quer achincalhar um homem se usa o feminino? Diz-se: ele é um filha da puta…

E prossegue:

— Tenho-lhe um ódio fidagal!

Lá vem a correcção: tens-lhe um ódio figadal!

— Como assim, se o odeio, não com o fígado, mas com altivez de fidalgo?


Sempre a emendá-lo. Se ele diz que vai meter o arroz no tacho, retruca ela que é pôr e não meter. 

— Como assim, meter não é pôr dentro de? Ora se o ponho dentro do tacho…

Se fala no testo, replica ela que é a tampa da panela; se ele lhe pede o alguidar, ela zomba: – Toma lá a tigela.  Se telefona a dizer que vai chegar tarde para o jantar pois perdeu o comboio: — Mas é tão grande! E já o achaste? 

— Olha, deixa-te dessas coisas, vou no primeiro comboio…

— O da meia- noite?

— Qual meia-noite, qual carapuça! Vou no primeiro que apanhar…

— E depois, traze-lo na mão?

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O jogo do gato e do rato

Um rato passeia descaradamente, em plena luz do dia, pela valeta da rua. Ao que isto chegou, por onde andam os gatos de agora, esses que miam, gemem, berram desalmadamente durante as noites? 

Mas eis que, a uns cinquenta metros, parece ter sido detectado pelo gato da vizinha. Como quem não quer a coisa, vai-se aproximando lentamente. O rato imobiliza-se.

Ah, ainda há gatos como os de antigamente, que, mesmo gordos da comida gourmet, amolecidos por fofos sofás, mais propensos a carícias do que a brigas com os compadres, não resistem ao ancestral apelo da caçada!

Ei-lo, foto 1,




que se aproxima da distância do salto sobre a presa, estuda o ângulo, calcula os efeitos do impacto, escolhe o golpe que atordoará a vítima, que depois levará triunfalmente para casa, e com que brincará até que morra das sevícias, abandonando-a depois sobre o tapete da entrada como presente para a dona…

Desencadeia o ataque (foto 2).


O rato está perdido. Mas — ó surpresa!— ai estes gatos de agora, capados, amolecidos pela boa vida, instintos embotados pelas mordomias da boa vida! Não desfere o golpe incapacitante e deixa o rato afastar-se tranquilamente para o refúgio das pedras e das ervas!

Este mundo está perdido!