Cheguei
um pouco atrasado à primeira aula da
manhã, já os corredores do Instituto
Comercial estavam vazios. O professor de Elementos de Direito Civil, Caixinha de seu apelido, pessoa de ordinário
afável, camarada, sempre a insinuar que também ele estava contra o
regime, parecia esperar apenas por mim para começar raspanete
exaltado: ele a tratar-nos bem, como pessoas, nós a espetar-lhe a
faca nas costas, mas daqui para a frente outro galo cantará,
acabaram-se as confianças, cada macaco seu galho!
Consciência
tranquila, nada sabendo, nada compreendendo, olhava-o fixamente, a
tentar perceber o que o teria zangado daquela forma -- pelos vistos
comigo, e os meus colegas da dianteira pareciam confirmar as suas
suspeitas, voltando as cabeças para trás, para mim, como se eu
fosse o responsável pela fúria sonorosa que se tinha apossado do
homem.
Numa
qualquer interrupção, talvez a receber o livro de ponto, bichanei a colega do lado: porque é que o Caixinha estava tão
bravo?
Passou-me
à socapa panfleto acabadinho de sair, emanado da clandestina
Pró-Associação de Estudantes, composta predominantemente por
alunos expulsos nas greves dos anos anteriores, os quais agora integravam
também o Estar na Luta, de Económicas -- onde o pasquim fora
elaborado.
Da
primeira à última página, professores e
funcionários eram ofendidos, ridicularizados. E encontrei, pelo
meio, desenho tosco, feito a estilete no estêncil, de uma faca e um
caixão, a ilustrar texto com título sugestivo:
CADA
CAIXINHA FABRICA O SEU CAIXÃO
Compreendi
então. As evidências estavam contra mim, desde o meu aspecto --
cabelo comprido, barba, camisa de camuflado comprada na Feira da
Ladra --, ao comportamento e às companhias: chegara atrasado, como
para evitar que me relacionassem com o panfleto, e viam-me amiúde com revolucionários; não sabiam, não podiam saber, que
eles, no entanto, não confiavam em mim, que era então anarquista, e
por isso mesmo me não tinham posto a par dos conteúdos do panfleto,
nem mo tinham dado para distribuir.
No
intervalo, avisto o Luís M., "estudante" que apenas
entrava no Instituto para agitação: -- A malta, pá, tem que se
unir, pá, contra o director, pá...
--
Então, já leste? Tá bom, não tá?
Protesto.
Mal escrito, conteúdos injustos e reles. Então o do Caixinha...
--
Um bom filha da puta, pá! Os professores são todos fascistas, pá,
ou social-fascistas. Uns bufos! E tu, ou estás com os estudantes e a
luta, ou estás com o inimigo. O do Caixinha está muito bom, os
estudantes gostam, pá, já muitos mo disseram, pá, há que
desmascarar esses gajos que se fingem amigos dos estudantes, pá...
Fui eu que o escrevi, podes ir bufar-lhe...
Obviamente
não fui. E no ano seguinte, cabelo curto, barba rapada, vestuário
normal, eu era já um "estudante progressista", de dia a
manifestar-me nas ruas de Lisboa berrando vivas à
ditadura do proletariado, de noite a pintar
nas paredes Abaixo a guerra colonial, a distribuir pelas caixas de
correio tarjetas com votos de longa vida ao camarada Mao...
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