Em finais do século passado, seguia eu num comboio regional para Lisboa a tentar ler livro chato, Les Langues Spécialisées, que ia apresentar nessa manhã no seminário de Lexicologia. Em Santarém, entra e senta-se a meu lado jovem negro que, vendo-me a ler em Francês, se me dirige nessa língua. E como ele insistia, eu, polidamente, fechei o livro e fui fazendo conversa.
Tinha vindo do Senegal, era uma espécie de bruxo, e muçulmano. Ia a Lisboa à oração semanal na mesquita. O seu trabalho consistia em exorcizar, desfazer mau olhado, pragas e feitiços, intervir como conselheiro matrimonial reconciliando casais desavindos, isto sem pôr em causa a poligamia. Fazia feitiços — bons, só para proteger o cliente de bruxedo de amante rancorosa —, aconselhava submissão à mulher que queria deixar o marido, orientava as orações e rituais islâmicos.
Eu, a querer voltar para o meu livro, e para ver se o calava, lá acabei por dizer que essa não era religião para mim, apreciador do vinho e da carne de porco.
—Sabes porque é que um muçulmano não bebe vinho?
Eu não sabia.
— Porque com o vinho ralha e bate na mulher, arma zaragata com os vizinhos…
Bom argumento. Embora eu pense, mas não lho disse, o vinho pague muita culpa injustamente, convencido que estou de que não faz as pessoas piores, apenas revela o que são.
— E a carne de porco?, perguntei, a abreviar-lhe o arrazoado.
Então ele explicou-me esse grande mistério: o Profeta estava a morrer à sede no deserto, apareceu um porco que o levou até uma fonte, salvando-lhe a vida. Pelo que decretou: não comas o porco, que é teu irmão!
Esta irmandade não me convencia. Mas passávamos então pelos estaleiros de construção da Expo e ele, apontando os operários, exclamou triunfante: — Vês? É só pretos a trabalhar nas obras!
Pois, pensei então, penso hoje: viver não custa, é preciso é saber viver.
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