Resguardado na adega, após uma semana de chuvadas intensas, constantes, como as havia antigamente, dessas em que nada se podia fazer no campo, o meu pai, grande amigo de patuscadas, convidou o meu tio Zé para irem às enguias: Com este tempo, o guarda-rios passa o dia na taberna do Sulpício.
— Não está tempo para isso, chove a potes… Encharcamo-nos todos, não nos livramos de pneumonia...
O meu pai, olhando para o céu: — Vem aí uma aberta, esta tarde não chove, sentenciou entendido.
E eu, fartíssimo de estar fechado em casa nessas férias de Natal, pedi para ir também, que me cheirava a aventura.
Na minha terra não há cursos de água, pelo que logo após o “jantar” nos metemos ao caminho, capuz feito de saco de serapilheira, botins de borracha, cestos para apanhar as enguias nas valas da Ribeira do Pereiro. A meio do caminho, na Salgueira, deu em chover torrencialmente.
— É melhor voltarmos para casa, vai ser toda a tarde assim, disse o meu tio avisadamente, vendo a escuridão do céu.
E o meu pai, talvez por espírito de contradição, seguramente por teimosia: — És é maluco, estamos quase lá, a chuva já passa, chuva civil não molha militar, e tretas do género.
Avançamos, a atascarmo-nos na terra encharcada, a escorregar pelas serventias e caminhos lamacentos. Chegámos às Cobradas. Lá em baixo, por entre as cortinas de água que desciam do céu para a terra, nem se avistava a Ribeira do Pereiro.
O meu tio, mais ajuizado, disse que não prosseguia: Ainda caio e parto uma perna, fico inválido, e tenho de sustentar a família. Não vou.
O meu pai teimava. Afinal, era só descer aquelas ravinas…
— E depois metes-te dentro das valas, com água por baixo e por cima? És é maluco!
Era. E teimoso. E odiava alterar planos. Tal e qual como eu.
Perto, havia um palheiro sem paredes. O meu tio abrigou-se lá, — Daqui não saio enquanto não deixar de chover. O meu pai prosseguiu, eu atrás. Mas as botas de borracha escorregaram na lama da ravina, caiu e rolou por terra. Voltou para o palheiro.
— Eu não te disse?
Desculpou-se com as botas. E estendendo-se sobre os caules de milho, logo começou a ressonar, sempre sonolento e exausto, de noite padeiro, de dia agricultor. Todas as noites era o mesmo fandango: a minha mãe, logo às onze da noite: Acorda, Afonso! Ele nada. Ela insistia. Abanava-o, chamava-o, mas o meu pai, que dormia três ou quatro horas por dia, nem reagia. Lá para a meia-noite, hora a que era suposto “pegar”, começava a rabujar. E, finalmente, já atrasado, levantava-se, retirava a pequena maleta de couro onde guardava o dinheiro da venda do pão do prego na parede, punha a trabalhar a motorizada Mondial, e fazia-se à escuridão da noite, deixando-no receosos de que, mal acordado, caísse em barranco nas curvas de Cós e por lá ficasse estendido toda a noite.
Como aconteceu algumas vezes. Culpa do fantasma que lá o esperava para o assombrar, de pau que se metia nos raios, do raio do vinho — a sorte de um homem é escapar, dizia, e a sorte só o desamparou muito mais tarde, numa manhã em que morreu debaixo do tractor.
Fora do palheiro, a chuva incessante, densa, fundia vinhas, cabeços, carreiros, os próprios pinheiros à nossa volta, numa mesma névoa, como se as nuvens tivessem descido à terra, o que, por lá sucede frequentemente. Escurecia rapidamente. Farto de esperar por aberta, certamente desejoso de chegar a casa e se enxugar à lareira, o meu tio acordou o meu pai. Com as dificuldades costumeiras: — O quê? Onde? Deixa-me mas é dormir!
Lá acabou por se levantar, rabugento. Tarde perdida, sem enguias, mas molhados como elas. E como enguias, escorregámos quase às cegas pelos carreiros barrentos, subida após subida até à aldeia e depois a casa, logo a minha mãe, vendo-me encharcado como pinto, ralha: Tira-me já essa roupa e vem aquecer-te ao lume!, e para o meu pai, Vêm bonitos, vêm! Que falta de juízo, e levares o garoto com este temporal, sabendo como ele é enfermiço! Amanhã cai estar de cama outra vez!
Não fiquei doente. Mas, fosse do que fosse, nunca mais o meu pai me levou às enguias.
FOTO: uma meia dúzia de anos depois. O meu pai, orgulhoso do atomizador Fontan que comprara recentemente, o meu tio Zé, o meu primo Fernando, e o meu irmão Afonso montado na nossa motorizada Mondial. Por volta de 1968. Não apareço porque fui o fotógrafo.
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