A discussão que a pandemia trouxe em torno das preposições de e
com (e.g., morrer de Covid, morrer com Covid) recordou-me desta
comunicação que apresentei em 2004 na Associação Portuguesa de
Linguística (APL), escrita em colaboração com a minha amiga
Cláudia.
Preparava então o
doutoramento em Linguística Computacional, na Faculdade de Letras de
Lisboa, de que viria a desistir após conclusão com aproveitamento
da parte curricular por razões que noutra ocasião talvez explicite,
adiantando desde já que a recepção desta comunicação muito
contribuiu para isso: as sumidades, que tinham assistido à
comunicação de uma protegida, saíram todas da sala antes que eu
começasse, deixando-me a fazer a apresentação para pouco mais que
cadeiras vazias…
Aí vai a Introdução
do artigo, publicado nas actas da APL:
Em
torno de preposições causativas
José Cipriano Catarino e
Cláudia Pinto
Escola Secundária do Entroncamento / Priberam Informática
Introdução
Este artigo
debruça-se sobre algumas questões em torno da semântica das
preposições, classe fechada de palavras gramaticais invariáveis,
cuja elevada frequência de uso e natureza polimórfica tornam o seu
significado difícil de precisar.
No cerne deste
estudo encontram-se as preposições de e com, que
estão certamente entre aquelas cujo conteúdo semântico é mais
difícil de captar, como pode ser constatado através da consulta de
alguns dicionários de língua. Em algumas destas obras elas são
tratadas como meros conectores lógicos, servindo essencialmente de
elementos de ligação entre dois sintagmas. Alguns autores, como
Schyn 2001, consideram estes conectores preposições incolores,
por oposição às preposições coloridas, aquelas cuja
semântica é facilmente demarcável.
Contudo, e tendo por
base o comportamento destas duas preposições em enunciados
causativos, no presente estudo argumenta-se no sentido de que (i)
estas preposições têm conteúdo semântico e (ii) a
respectiva selecção depende das propriedades do evento.
Neste trabalho, que
se enquadra no modelo do Léxico Generativo (Pustejovsky 1991, 1995),
procede-se ao estudo das restrições que condicionam a ocorrência
dos SPs causativos introduzidos pelas preposições de e com
em enunciados causativos. Mais precisamente, argumenta-se no
sentido de que a selecção destas preposições é condicionada pela
estrutura eventiva.
Interpretação causativa dos SPs
As entidades
causadoras de um determinado estado de coisas são normalmente
realizadas sintacticamente como sujeitos: O João saiu, O cão
ladra ao carteiro, O vento fechou a porta. Em enunciados deste
tipo, um eventual SP não tem interpretação causativa, exprimindo
frequentemente o modo, como nas frases (1) – (3):
O João saiu
de mansinho / com pressa.
O
cão ladra ao carteiro com raiva.
O
vento fechou a porta com força.
Vejam-se agora as
frases de (4) – (6):
O
João morreu de fome / com fome.
A
bomba explodiu com o impacto.
A
água ferveu com o calor.
Em enunciados como
os exemplificados em (4) – (6) fome, impacto e calor são,
respectivamente, a causa do estado de coisas a que cada um dos
eventos se reporta.
O contraste entre
estes dois grupos de frases evidencia que em (1) – (3) os
causadores do estado de coisas são realizados sintacticamente como
sujeitos, o que não sucede nas frases com SPs causativos (4) –
(6), em que se verifica uma dissociação entre função semântica e
função sintáctica, visto que os sujeitos sintácticos não são os
causadores dos estados de coisas.
Estes SPs ocorrem
tipicamente com verbos inacusativos (morrer e explodir, nos
exemplos (4) e (5)) ou com as variantes inacusativas de verbos
que participam na alternância causativa, como ferver, no
exemplo (6).
Nos exemplos de (4)
– (6) os verbos de mudança de estado são, de acordo com a
tipologia eventiva de Pustejovsky, núcleos de transições,
eventos télicos (com um intervalo temporal fechado) ramificados em
dois subeventos distintos. Tal não surpreende, pois a presença de
uma entidade causadora pressupõe a existência de um evento final
diferente do inicial.
Os SPs causativos
podem também ocorrer em processos, eventos atélicos (com
intervalo temporal aberto), ramificados numa sequência de subeventos
idênticos, nos quais pode existir alguma mudança de estado, mas não
um estado final resultativo, como em (7):
O
João sorri de felicidade.
Os SPs causativos
não ocorrem em estados, como em O João ama a Maria, visto
que são eventos atómicos, sem alterações na sua estrutura
interna, pelo que nada é causado. Consequentemente, eventuais SPs
não são interpretados como causativos, exprimindo, por exemplo, o
modo:
O
João ama a Maria com paixão.
O estudo centra-se,
portanto, em eventos do tipo processo e transição e
adopta a decomposição dos eventos em subeventos, proposta em
Pustejovsky, a qual permite incluir nas suas representações
semânticas informações sobre a ordenação temporal e as
restrições de dominância.
Atendendo à
ordenação temporal dos subeventos (e1 , e2 ),
podem ser consideradas três tipos de relação: precedência, ([e1
< e2]), como em O vento fechou a porta;
simultaneidade, ([e1
e2]), como em O João casou com a Maria;
precedência com simultaneidade, ([e1 <
e2]), como em O João caminhou até casa. A relação
temporal de precedência é aquela que melhor caracteriza os
enunciados causativos em estudo.
As restrições de
dominância são expressas em Pustejovsky assumindo que nos eventos
complexos (i.e., ramificáveis) um dos subeventos assume normalmente
proeminência relativamente ao outro. Assim, em O vento fechou a
porta é a acção da entidade vento que é mais saliente;
em A porta fechou-se é o estado final que sobressai.
Nesta perspectiva,
uma transição como O vento fechou a porta pode ser
ramificada em dois subeventos, ordenados temporalmente, para dar
conta da alteração de situação da entidade porta, que,
devido à acção de um causador, passou de "não fechada"
a "fechada" (Figura 1).