(No original, Yes, We’ll Gather at the River , in Vozes de Marte (I sing the body electric), Ray Bradbury, Argonauta)
Ou quase todos.
Pelos caminhos ficaram aqueles a quem o destino interrompeu a caminhada. A esses, resta-nos o fraco consolo de os lamentar, talvez chorar, recordá-los com nostalgia quando um qualquer acontecimento os trouxer de novo à nossa memória.
E os outros, também cada vez mais numerosos, que, obcecados com um qualquer fundamentalismo, se deixaram paulatinamente cegar pelo ódio ao outro – a quem chamam esquerdófilo, ou direitolas, ou comunista, ou fascista, racista, preto, cigano, assassino de animais, covideiro, negacionista…
Estes ódios, que sempre existiram, não nos impediam num passado ainda muito recente, de conviver civilizadamente, deixando a cada um a escolha das companhias com quem jantava, das que levava para casa. Mas, fora do seu círculo íntimo, não insultava desconhecidos, não cortava relações com familiares e vizinhos apenas por terem diferente visão do mundo ou da sociedade.
Vivia-se e deixava-se viver. Discutia-se, acaloradamente que fosse, discordava-se, contestava-se. A ideia, não a pessoa.
Agora é diferente. Tenho para mim que a maior parte dos desaforos provém de solitários desocupados, que por isso mesmo não precisam da hipocrisia que mantém vivas as relações sociais, e, não sabendo o que hão-de fazer à puta da vida, na puta da vida, levantam-se azedos e azedas, após noite mal dormida a remoer, e logo correm para os computadores a insultar quem pensa diferente, a procurar impor a sua lei e a sua justiça neste mundo, para eles canalha, cheio de gentalha ignóbil, ou, quando o vocabulário lhes escasseia tanto como as ideias, porcos: porcos fascistas, porcos comunistas, porcos machistas, porcos xenófobos… Tudo uma porcaria, obviamente, porque é só o que pode sair das suas mentes.
É nas redes sociais, acobertado no quase anonimato e sobretudo na distância física que afasta a cara da chapada justiceira, que encontramos o discurso do ódio na sua forma mais pura, o seu léxico e os seus agentes, de todas as cores políticas e de pele. Lendo nas entrelinhas, por detrás do ódio que por jorra como enxurro, são espaços fascinantes, imprescindíveis para o conhecimento do modo de vida, da mentalidade, quiçá da solidão, da amargura que é a vida quotidiana de uma geração – a que também eu pertenço.
A pandemia exacerbou os ânimos. Quando tiver passado, todos nos reuniremos junto ao rio – menos os indesejáveis, pelo que seremos a mão-cheia de sempre: aqueles que se não melindraram com alguma chamada de atenção desajeitada, que se não ofenderam com discordâncias talvez mal expressas, que não cortaram relações connosco por termos visão diferente da sociedade, que não nos repudiaram por não alinharmos entusiásticos em indignações justiceiras primárias e indignas de pessoas bem formadas, nem em denúncias e perseguições pidescas.
Junto ao rio? Proponho na minha adega, nos Montes, terra que foi de muito vinho e poucas fontes, e não tem rio nenhum. Entre boa comida, o vinho da casa, a boa companhia, com a suprema alegria de estarmos vivos e entre amigos.
Sim, todos nos reuniremos junto ao rio.