Vindima. Chega mais uma tina de uvas à adega, o carreiro pega em forquilha e começa a despejá-las para tabuleiro que entra pela janela, escorregam para o esmagador, movido a braços, acumulam-se noutra tina onde um homem enche o poceiro de madeira, carrega-o sobre o ombro, protegido por saco de serapilheira, trepa por escada de madeira, e deita as uvas e os engaços num tabuleiro atrás do qual um garoto, escarranchado no tonel, a cabeça a roçar o tecto da adega, se afadiga, empurrando com as mãos polpa pegasoja e engaços para o funil encaixado no batoque.
Não tem mãos a medir o garoto.
Eu. Sessenta anos atrás.
Contratado para meter uvas a, se bem me lembro, quinze tostões a tina – uma fortuna, para quem recebia aos domingos cinco tostões.
Tina após tinha, que o ano tinha sido produtivo, esforçava-me para não ficar mal visto, os dedos esfolados nas arestas de metal do funil, saturado daquele trabalho monótono e cansativo para garoto “relezico”, o pensamento na jorna que receberia – e, no final da manhã já tinha metido seis tinas de uvas!
A caminho de casa, na breve pausa para almoço, a que então chamávamos jantar, encontrei um primo, uns anos mais velho. Orgulhoso, gabei-me do que já tinha ganho: nove escudos! E de tarde ganharia certamente outro tanto ou até mais!
A inveja, coisa feia, atacou esse meu primo: Ganhaste o quê?, para isso era preciso que ele te pagasse!
A dúvida instalou-se na minha cabeça, agravou-se com a chegada de um jovem tio meu, que ajudou à festa: o dono das uvas era caloteiro, tinha fama de não pagar a ninguém… Fazem essas promessas aos garotos, mas depois nunca as cumprem!
Amargurado, quase a chorar, decepcionado, segui para casa, sem vontade de cumprir o resto do contrato.
Pouco depois, encontrei o meu pai. E eu, já em lágrimas, contei-lhe o meu drama: não ia trabalhar mais porque depois o homem não me pagava.
O meu pai não me ralhou. Argumentou, quase como se me pedisse que cumprisse a minha parte do aprazado. O dia de pagamento era ao sábado, que voltasse para o trabalho, o homem era sério, havia de cumprir a sua parte, tal como eu, já um homenzinho, tinha de cumprir a minha.
Lá voltei, duvidoso, para as uvas, tentando ignorar as caretas de troça que uma vez por outra o meu primo me fazia à porta, a escarnecer deste pobre escravo enganado, a trabalhar em vez de brincar, para no final nada receber.
Doze tinas de uvas metidas até ao final do dia. E no sábado seguinte, o dono das uvas foi a minha casa pagar-me a jorna, como combinado. Dezoito escudos que deram entrada no meu “migalheiro”, como chamávamos ao mealheiro, talvez por habitualmente só lá entrarem migalhas na forma de um ou dois tostões de cada vez.
Foi assim que aprendi o valor da palavra dada. Por ele e por mim.