Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

A historieta censurada pelo Facebook

 Bullying

O Tóino brinca pacífico à porta de casa. E eu a gritar-lhe, preparado para fugir ladeira acima:
– Eh bucha! Não me apanhas, não me apanhas, gordo de merda!
Ele ainda me persegue. Mas depressa se cansa, volta atrás esbaforido, a vociferar ameaças:
– Ah, quando te agarrar, eu faço, eu aconteço....
À noitinha a minha mãe manda-me fazer recado: – Vais a casa da avó da Luz...
Tinha de passar pela casa do Tóino.
– Não vou, tenho medo...
– Medo de quê, se ainda é dia? Toca a andar, seu medricas!
Cheguei a casa da minha avó ofegante, coração aos coices, da rápida corrida para evitar maus encontros. Mas no regresso, lusco-fusco, o malandro pegou-me de emboscada:
– Desta é que mas pagas!
E agarrava-me por uma orelha, esbofeteava-me, – Vá, chama-me agora bucha!
Eu choramingava, entre lágrimas e ranho: – Vou dizer à minha mãe...
E tanto me contorci e berrei que consegui libertar-me. Apenas me afastei três pulos,
– Ranhoso, bucha, és só banhas, paneleiro de merda! – nem sabia então o que era isso. E ele, a quem a fúria dava asas, quase a apanhar-me outra vez, perseguia-me até casa, a rosnar ameaças espumadas: – Agora é que as levas a sério, dou-te coça que te vai servir de emenda!
A chinfrineira atrai à porta a minha mãe. – Que guerra é essa, vamos lá a parar com isso!
– É este bucha que me bateu e quer bater-me mais!
– Não admito que me chames bucha!
E para mim: – Alguma lhe fizeste!
– Eu? Vinha a passar de casa da avó, agarrou-me de surpresa, começou a bater-me...
– Porque tu esta tarde chamaste-me nomes!
– Eu? E para a minha mãe: – Que eu seja ceguinho...
A minha mãe estava brava. Um marmanjo daqueles – bucha, gordo, ia eu dizendo, já agarrado às saias dela – a bater no seu filhinho, criança indefesa, "relezica", e sem quê nem porquê.
– Pois a tua mãe vai sabê-las e é agora!
Eis que as nossas mães ralham, a do Tóino que não aguenta mais ouvir a garotada a atentar-lhe o filho, que só quer brincar sossegado, a minha que nomes não fazem sangue nem marcas como as que tenho na cara: – Ora veja-me lá o que o seu filho me fez ao garoto, acha bem?
– E você acha bem que o seu lhe chame gordo?
– Pois se o é!
Era, mas de doença! E doenças não se atiram à cara.
– Doença? Vossemecê até conta por aí: "O meu Tó é uma boquinha abençoada, come uma dúzia de sardinhas de cada vez!"
– Ora, o que come ou não come é comigo. Felizmente posso dar-lhas, não sou como umas e outras que têm de dividir uma sardinha pelos filhos.
– Pobre, mas honrada, ouviu? E que o seu filho que não torne a bater no meu!
– Ora, o seu que lhe não chame nomes! E fecha ruidosamente a porta de casa, farta da peixarada.
No caminho de casa, levo reprimenda forte: – Ai de ti se eu sei que o voltas a provocar! Quem vai, vai, quem está, está.
– Eu, mãe? Ele é que me bate primeiro...
– Se não podes com ele à unha, chega-lhe à pedrada! Não te venhas é queixar para casa!
Pois sim. Mal saía da escola, atirava a mala para cima da mesa, enchia a boca de torrões de açúcar e corria escadas abaixo antes que a minha mãe me impedisse. Ainda me gritava da janela: – Onde vais? Já fizeste os trabalhos de casa? Merenda primeiro!
– Vou brincar, depois faço-os. Não tenho fome, como depois...
Lá estava o bom do Tóino a brincar pachorrento à porta.
– Eh gordo! Bucha de merda, paneleiro! Não me apanhas! Não me apanhas!
E ele outra vez a espumar ladeira acima: – Vais ver a coça que te dou quando te agarrar! Ainda te faço pior do que ontem!
– Ó mãe, o bucha quer bater-me outra vez! grito, ele olha em volta, detém-se por um instante, o bastante para me pôr a salvo em casa, galgando de pulo as escadas.
– Vieste a fugir de algum? E a minha mãe, desconfiada por me ver chegar bofes à boca, deita mão a verdasca justiceira.
– Eu, mãe? Vim a correr para fazer os trabalhos da escola!

Da censura

Hoje, uma historieta minha publicada no grupo da minha terra foi retirada pelo Facebook, com o argumento de que fazia discurso de ódio. Fui advertido de que a minha conta será restringida se voltar a violar os padrões da “comunidade”.

Nunca imaginei vir a ser alvo de censura, ainda por cima por um mecanismo informático.
No meu entender, e creio que entendo alguma coisa, nada na história ofendia quem quer que fosse, ou o que quer que fosse, mesmo nestes tempos de melindres exacerbados.
Não preciso, não tenho idade nem vontade de compactuar com isto, e menos ainda de impor qualquer forma de autocensura à minha escrita.
Se já pouco frequentava o Facebook, a partir de hoje menos ainda o farei.