Naquela casa, os conflitos são frequentes. Ao contrário do habitual, não é o dinheiro, nem a educação dos filhos, ou a interferência dos pais de um ou de outro que os desencadeia. É o uso da língua. Por exemplo, ele conta um problema do seu trabalho:
— Vi-me em papos de aranha…
E logo a mulher o corrige:
— Não é em papos, mas em palpos. As aranhas não têm papos!
Ele detesta ser corrigido. Sobretudo quando crê que tem razão.
-- Quero lá saber se as aranhas têm papos ou palpos! Nunca ouviste falar em metáforas?
— Não desvies a conversa. Sabes muito bem que eu tenho razão. Como sempre.
— Pois, tu tens sempre razão. E sabes sempre tudo.
— Não sei sempre tudo, mas sei que as aranhas têm palpos e não papos.
Passeiam no parque de uma cidadezinha de província:
— Olha, um círculo viçoso!
E ela, sem olhar sequer: – Não se diz círculo viçoso mas sim círculo vicioso!
— Não, é um círculo viçoso!
— És tão casmurro! E queres sempre ter razão, mesmo sabendo que a não tens!
— Então olha, e diz-me o que é aquela figura geométrica, redonda e coberta de relva verdinha?
— E depois veio a ovelha ranhosa do Oliveira…
— Ovelha ronhosa, queres tu dizer!
— Sei muito bem o que quero dizer. O Oliveira é um ranhoso dum graxa, que na presença da patroa se põe a balir mansamente, com olhos de carneiro mal morto…
— Então porque é que disseste ovelha e não carneiro?
— Não sabes que quando se quer achincalhar um homem se usa o feminino? Diz-se: ele é um filha da puta…
E prossegue:
— Tenho-lhe um ódio fidagal!
Lá vem a correcção: tens-lhe um ódio figadal!
— Como assim, se o odeio, não com o fígado, mas com altivez de fidalgo?
Sempre a emendá-lo. Se ele diz que vai meter o arroz no tacho, retruca ela que é pôr e não meter.
— Como assim, meter não é pôr dentro de? Ora se o ponho dentro do tacho…
Se fala no testo, replica ela que é a tampa da panela; se ele lhe pede o alguidar, ela zomba: – Toma lá a tigela. Se telefona a dizer que vai chegar tarde para o jantar pois perdeu o comboio: — Mas é tão grande! E já o achaste?
— Olha, deixa-te dessas coisas, vou no primeiro comboio…
— O da meia- noite?
— Qual meia-noite, qual carapuça! Vou no primeiro que apanhar…
— E depois, traze-lo na mão?