A arribana da Menina Cica fazia cotovelo ao fundo da minha rua. Aberta para as duas estradas, armazenava rolheiros de vides.
Era lá que, saído da camioneta que me transportava de Alcobaça, escondia os livros emprestados antes de chegar a casa. E era lá, aninhado a um canto sobre o pó velho de terra seca e muitas gerações de vides, que os devorava às escondidas.
Entenda-se. Os meus pais gostavam que eu lesse. Os livros da escola. Os outros, que nenhuma falta faziam, apenas de tempos a tempos, como hoje os doces que se dão às crianças. Eu, viciado na leitura, precisava diariamente de livros novos, lidos logo na primeira semana de aulas os de Português, de Ciências, de Geografia.
Em cada mês, requisitava o máximo permitido na Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian, creio que seis livros, que escondia numa arca na adega. Lidos esses, recorria à troca e ao empréstimo.
Tudo servia, contanto que tivesse letras. Até o Mandrake, de que nunca fui fã, até os Sete, há muito lidos todos os Cinco, umas duas dezenas de títulos.
Biografias, história, aventuras, escassa divulgação científica, marchava tudo.
E não conhecia maior prazer que, escondido na arribana, resguardado das vistas pelos feixes de vides amontoados, sobreviver em ilha deserta, perseguir a baleia branca pelos mares do Mundo, caçar a foca nos gelos do Norte, lutar ao lado de D’Artagnan e dos seus amigos mosqueteiros.
Mas os dias de Outono minguavam a olhos vistos, escasseava o tempo da leitura ao chegar a casa quase de noite. Para ler os livros proibidos, comecei a acender a luz do quarto durante a noite, livro de estudo aberto e dentro dele, um dos tais que nenhuma falta faziam.
Apercebendo-se da luz acesa no eu quarto, a minha mãe embevecia-se e contava à minha avó: O meu Zé estuda tanto!
Até que…
Um pequeno erro estragou tud
o. Tinha pedido à minha mãe que me encapasse os livros da escola, esquecido dos de “cobóis” no seu interior. Ora a minha mãe fervia em pouca água, e furiosa pelo meu crime de leitura e mais ainda por a ter enganado na sua ingenuidade, não teve mãos a medir, nem poupou nas palavras.
Pior: na manhã seguinte não me deu dinheiro para o passe da camioneta, nem sequer para o bilhete, segura de que eu manifestaria arrependimento, pediria desculpa, prometeria nunca mais repetir.
Mas eu era torcido e retorcido, além de orgulhoso como as personagens dos Três Mosqueteiros.
Não nos falámos ao pequeno-almoço e eu saí decidido. Na padaria, pedi boleia ao distribuidor do pão e viajei para Alcobaça aos tombos num furgão fechado, por entre cacetes e papos-secos. No regresso, meti-me a pé ao caminho até que, na subida da Maiorga, o meu pai, que saía do trabalho, parou a motorizada e sem palavras levou-me com ele.
A minha mãe ainda insistiu, misturando discurso com palmadas: queria arrependimento, queria mudança de rumo. Mas eu só chorava, palavras, nenhuma, promessas, nada.
Torcido. E no dia seguinte, sempre a rezar-me o responso, lá me deu o dinheiro para o passe da camioneta.
Pobre mãe, que tanto atormentei!