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sábado, 27 de setembro de 2025

Leituras proibidas

 A arribana da Menina Cica fazia cotovelo ao fundo da minha rua. Aberta para as duas estradas, armazenava rolheiros de vides.

Era lá que, saído da camioneta que me transportava de Alcobaça, escondia os livros emprestados antes de chegar a casa. E era lá, aninhado a um canto sobre o pó velho de terra seca e muitas gerações de vides, que os devorava às escondidas.

Entenda-se. Os meus pais gostavam que eu lesse. Os livros da escola. Os outros, que nenhuma falta faziam, apenas de tempos a tempos, como hoje os doces que se dão às crianças. Eu, viciado na leitura, precisava diariamente de livros novos, lidos logo na primeira semana de aulas os de Português, de Ciências, de Geografia.

Em cada mês, requisitava o máximo permitido na Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian, creio que seis livros, que escondia numa arca na adega. Lidos esses, recorria à troca e ao empréstimo.

Tudo servia, contanto que tivesse letras. Até o Mandrake, de que nunca fui fã, até os Sete, há muito lidos todos os Cinco, umas duas dezenas de títulos.

Biografias, história, aventuras, escassa divulgação científica, marchava tudo.

E não conhecia maior prazer que, escondido na arribana, resguardado das vistas pelos feixes de vides amontoados, sobreviver em ilha deserta, perseguir a baleia branca pelos mares do Mundo, caçar a foca nos gelos do Norte, lutar ao lado de D’Artagnan e dos seus amigos mosqueteiros.

Mas os dias de Outono minguavam a olhos vistos, escasseava o tempo da leitura ao chegar a casa quase de noite. Para ler os livros proibidos, comecei a acender a luz do quarto durante a noite, livro de estudo aberto e dentro dele, um dos tais que nenhuma falta faziam.

Apercebendo-se da luz acesa no eu quarto, a minha mãe embevecia-se e contava à minha avó: O meu Zé estuda tanto!

Até que…

Um pequeno erro estragou tud


o. Tinha pedido à minha mãe que me encapasse os livros da escola, esquecido dos de “cobóis” no seu interior. Ora a minha mãe fervia em pouca água, e furiosa pelo meu crime de leitura e mais ainda por a ter enganado na sua ingenuidade, não teve mãos a medir, nem poupou nas palavras.

Pior: na manhã seguinte não me deu dinheiro para o passe da camioneta, nem sequer para o bilhete, segura de que eu manifestaria arrependimento, pediria desculpa, prometeria nunca mais repetir.

Mas eu era torcido e retorcido, além de orgulhoso como as personagens dos Três Mosqueteiros.

Não nos falámos ao pequeno-almoço e eu saí decidido. Na padaria, pedi boleia ao distribuidor do pão e viajei para Alcobaça aos tombos num furgão fechado, por entre cacetes e papos-secos. No regresso, meti-me a pé ao caminho até que, na subida da Maiorga, o meu pai, que saía do trabalho, parou a motorizada e sem palavras levou-me com ele.

A minha mãe ainda insistiu, misturando discurso com palmadas: queria arrependimento, queria mudança de rumo. Mas eu só chorava, palavras, nenhuma, promessas, nada.

Torcido. E no dia seguinte, sempre a rezar-me o responso, lá me deu o dinheiro para o passe da camioneta.

Pobre mãe, que tanto atormentei!


domingo, 11 de maio de 2025

Apocalipse

Em criança, apavoravam-me os pequenos barulhos da noite aldeã — o soalho que estalava, o ténue zumbido do contador da electricidade, as correrias e brigas dos ratos no sótão, o pio agoirento de coruja... e, pior, o receio de aparições do Diabo, sempre tentador e atentador, ou fantasmas, almas penadas, espíritos de defuntos que, faltos de ocupação, podiam surgir a qualquer momento no escuro.

Mas, mais do que os medos trazidos pela noite, alimentados pelas histórias de garotos, beatas, padre na missa, era o fim do Mundo que me aterrorizava. O fim de tudo, certamente após tormentos cruéis do Nosso Pai dos Céus, lá em cima sempre de olho em nós, sempre zangado, sempre a prometer, via profetas, castigo terrível e derradeiro. Era ele quem ralhava no trovão, quem escrevia no céu o aviso do Arco da Velha Aliança — já havia destruído uma vez o Mundo pela água, da próxima seria com o fogo, e isto por via dos nossos pecados, que eram tantos: um distraído padre-nosso ao rezar o terço, pequenas patifarias omitidas por vergonha na confissão, como ter espreitado rapariga que se aliviava em tosca retrete, ou brincadeira durante o Santo Sacrifício da Missa, enquanto o sacerdote verberava o povo ímpio — a vindimar ao domingo! Ah, certamente a mesma gente que fugia à côngrua, (e o senhor prior desesperava por trocar a lambreta por carro), que não mandava os filhos à catequese, talvez hereges, ateus, meio caminho andado para o maldito comunismo, que tanto entristece Nossa Senhora, que prometeu em Fátima o milagre da conversão da Santa Rússia! 

Eu lia sofregamente. Tudo. O jornal, na loja; as folhas arrancadas que embrulhavam o peixe, os fragmentos espetados em pregos das retretes, e amiúde encontrava evidências da proximidade do Apocalipse, agora pelo fogo nuclear, desencadeado pelo Homem, que assim ajudaria o Criador a arrasar definitivamente a Criação e as suas criaturas, que sempre detestou, com excepção de uns tantos graxas como Abraão, capazes até de lhe sacrificarem o filho primogénito para permanecerem nas suas boas graças.

Aí pelos meus treze anos, já a estudar em Leiria, havia na casa onde estava hospedado vários exemplares das Selecções do Reader’s Digest e por elas fiquei a saber que o Mundo era, afinal, o Universo, uma miríade de galáxias, uma infinidade de estrelas, tudo nascido no Big Bang, tudo condenado a perecer num Big Crunch ou em qualquer outra catástrofe cósmica, dependendo da massa do Universo — o velho fim do Mundo, inexorável, já não  planetário, mas cósmico, já não causado pela fúria divina, mas pelos ditames da matéria!

Os anos e as leituras não dissiparam o cenário pessimista da infância. As lendas, a beataria, a crendice cederam perante a linguagem da ciência e as extraordinárias descobertas do último século, mas o facto essencial permanece: o Universo, surgido do Nada, a ele voltará. É certo que muito antes terei eu desaparecido, a terra terá sido incinerada pelo Sol quando este, esgotado o hidrogénio que agora o alimenta, crescer até à órbita de Marte, a Via Láctea terá colidido com Andrómeda, tudo aquilo que hoje conhecemos seria irreconhecível se cá voltássemos. E não encontraríamos nenhuma linha dos meus escritos, nem sequer nenhum vestígio  das obras dos maiores criadores da humanidade, nem um simples átomo que atestasse a sua existência num passado distante — o nosso presente.

Sim, esse fim do Mundo ocorrerá, tudo o indica, num futuro longínquo. Só que passado, presente e futuro são referências ao Tempo, e eu, apesar de muito ter procurado, continuo sem saber o que o Tempo é. Ou se É.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Arrependimento

 Portei-me mal ao telefone. Mas detesto que me liguem a pretexto de me oferecerem descontos, os quais, invariavelmente, obrigam a novas despesas. E estava a comer. Primeiro, pedi, em vão, que a telefonista se despachasse, explicitando rápida e claramente qual o assunto. Depois, irritei-me com o mau português: “eu quero LHE informar…" Impaciente, corrigi-a: “eu quero informá-lo…”

Desligou a chamada.

E eu fiquei arrependido por ter tratado mal pessoa que, obviamente sem formação e ignorando as regras básicas da sintaxe do Português Europeu, tem de aguentar um emprego daqueles. 

sábado, 19 de abril de 2025

Livros aos montes

Estudava então em Leiria, pouco, e estava alojado em casa modesta, velha, escura, tristonha, de uma senhora divorciada que recebia estudantes como hóspedes — sim, ao contrário do que hoje se diz por aí, o divórcio existia antes do 25 de Abril, embora se não  aplicasse aos casamentos religiosos. 

Adiante. O que interessa é que, sobre o soalho, ao fundo de um corredor, amontoavam-se centenas de livros, sem qualquer ordem. Para um miúdo viciado na leitura, afastado da família, num meio completamente estranho, foi um maná dos céus. Devorava um ou dois por dia, misturando Júlio Dinis com Caryl Chessman, o condenado à morte que na cela se tornou escritor, Thor Heyerdahl e a sua Kon-Tiki, Júlio Verne, Dumas, Salgari, Defoe, histórias policiais e de terror com os livros de cowboys e o Major Alvega...

Os dias voavam, as saudades não doíam tanto... 

Naquele primeiro período, os resultados escolares não foram brilhantes.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Em Abril,

Em Abril, queimou a velha (ou o velho) o carro e o carril*

E o que sobrou, em Maio o queimou.

* Chambaril, noutra versão.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Invernias

Venho de outro tempo, de outro lugar, de um mundo já desaparecido. E, sem que ninguém mo peça, dou testemunho desse tempo, desse lugar, desse mundo, por exemplo, no meu romance Entre Cós e Alpedriz. 

“Oo geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tamtos malles, nem foi quinhoeiro de taaes padecimentos!” (Fernão Lopes, Crónica d’el-rei D. Joham I)


“Nem mesmo turvados pelo álcool conseguem imaginar esses tempos que um dia virão e que poucos deles conhecerão, tempos em que a aldeia terá telefones, água canalizada, esgotos, estradas e caminhos alcatroados. Não haverá então fome em Portugal, mas outros problemas surgirão, fazendo talvez os seus netos e bisnetos desejarem ter vivido no tempo dos avós, em que éramos, disse-se depois, pobrezinhos, mas honrados e felizes. É sabido, ninguém está bem com o bem que tem. Fiquemos, portanto, naquele Inverno terrível, como poucos terá havido antes ou depois, desde que os Montes são habitados.

Chuva e vento, vento, chuva e frio. Gemia água a terra, rebentaram as nascentes, os regatos cresceram até serem novamente rios, submergiram as pontes, matando mesmo a filha do (…)

E um dia, inevitáveis como o Inverno que a todos atormentava, apareceram os “pexins”. Há meses que não podiam pescar, a fome apertava. E apertava-se a garganta dos camponeses ao verem aqueles homens valentes, que não receavam mar e temporais, pedindo esmola por amor de Deus. Os cavadores, também eles impedidos pelo mau tempo de ganhar o sustento, comoviam-se e cada um dava o que podia: um punhado de batatas miúdas, das mesmas que a mulher cozia para os porcos, uma tira de toucinho, uma ou outra maçã ou passas de uva, figos secos, uma fatia de broa e, sempre, um copo de água-pé ou um rijo mata-bicho, aquecendo o corpo e queimando as tristezas, que, bem o sabemos, nem dão de comer nem pagam dívidas.

Então, abrigados nas adegas, ouviam os pescadores horas e horas a fio enquanto fora a chuva batia nas paredes, jorrava dos beirados, corria pelas ruas, fazia transbordar as regueiras, transformando tudo num mar de água. As conversas corriam soturnas como o tempo, recordando os entes queridos levados pelo mar na longínqua Terra Nova, na costa de Peniche, às vezes até junto à Nazaré, mesmo à vista das famílias. E partiam, as ceroulas de flanela arregaçadas pelas canelas, os pés descalços, por poças e atalhos, mendigando pelas aldeias que atravessavam, guardando nos sacos de serapilheira que carregavam às costas a pobre dádiva dos pobres, a quem também escasseava o sustento para si próprios e para os seus; partiam, levando com que mitigar momentaneamente a fome à família enquanto os homens da terra permaneciam nas adegas e arribanas ou iam para a taberna beber fiado.

Como pregoeiro do mau tempo, entoando na gaita-de-beiços a triste melodia do inverno, chegou o amola-tesouras, tentando atrair freguesas com o mesmo assobio com que na Primavera se oferecia para capar os porcos, os mesmos alforges na bicicleta, de onde agora extraía um esmeril para afiar facas e tesouras, alicate e arame fino para consertar as varetas de chapéus de chuva. Também para o galego os tempos estavam maus, calcorreando estradas alagadas e caminhos de lama, a bicicleta à mão, sempre debaixo de chuva inclemente, para ganhar um cruzado aqui, outro ali.

Chegou o cesteiro, instalando-se ora numa adega ora noutra, e habilidosamente entrelaçava vergas fazendo cestos onde as camponesas transportariam ovos ou fruta, poceiros para as uvas na vindima, poceiras para a fruta que venderiam nas praças de Alcobaça ou de Pataias, poceirões onde os burros carregariam o esterco para as hortas quando o tempo levantasse. Ao contrário da formiga, trabalhava de Inverno, mas só receberia mais tarde, talvez apenas no final do Outono: — Pago-te quando vender um casco de vinho..., ambos sabendo que o mais difícil é receber, seja a jorna ganha seja o vinho vendido."

In Entre Cós e Alpedriz

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Coisas de mau gosto

Os mortos não fazem anos. Para eles, o tempo acabou.

E é macabro dizer que fulano  “ faria hoje x anos” — em que estado? 

Ele (ou ela) gostaria de os fazer? E de viver, sabendo mortos todos os familiares, amigos, conhecidos, isto se para tal tivesse ainda lucidez?

Lembro-me, a propósito, de uma resposta de Mário Soares quando uma dona lhe dizia algo como ‘que bonito ter oitenta anos’:

— Para si, que os não tem.