- Que houve tentativas anteriores;
- Que os esforços conducentes à publicação da obra por meios convencionais não tiveram êxito.
Com efeito, não acordei um dia decidido a escrever um romance. Desde miúdo que sabia que havia de ser escritor (embora muito haja a dizer sobre a matéria e sobre o termo “escritor”, isso fica para outra ocasião). Durante décadas, tentei estruturar algo merecedor desse nome, primeiro rabiscado em papel, depois batido à máquina… O computador facilitou-me a vida, não tanto por permitir escrever mais lixo mais depressa – o que, efectivamente, permite – mas por possibilitar manter escondidas as tentativas de escrita: é que, ao contrário de muito boa gente, mas cada um é como qual, diz-se, não tolero que me leiam o que quer que seja até que eu próprio o dê a ler – o que só acontece quando sinto que está terminado. Terminado não significa bom; significa que pode ser lido, visto que eu, ao contrário do que ouço frequentemente contar, raramente produzo algo satisfatório apenas por inspiração e só à força de transpiração redijo algo que considere aceitável.
Os textos que dão corpo ao Do lacrau e da sua picada foram, assim, escritos ao longo de muitos anos; a finalização da obra, que demorou mais de um ano, consistiu em boa parte na reformulação desses textos, para que se integrassem tão harmoniosamente quanto possível num todo comum.
Ingenuamente, acreditava que a crítica me dispensaria de falar sobre a minha obra, o que, confesso, me repugna, não por modéstia, que não é uma das minhas virtudes, mas porque sempre detestei explicar romances, filmes ou anedotas: ou o leitor é capaz de perceber por si só e então explicar-lhe o que quer que seja é ofender a sua inteligência, ou não gosta e não vale a pena explicar-lhe, ou é de compreensão e de cultura limitadas e então compreenderá as explicações, mas não a obra, pelo que o esforço resulta igualmente inútil. Porém, como a publicação de Do lacrau e da sua picada passou despercebida (talvez por ter saído como e-book, assunto para outra ocasião) e porque, quase dois anos após a sua conclusão, em Novembro de 2005, sinto um grande carinho por esta narrativa, que me ensinou muito sobre a técnica da escrita e mais ainda sobre a edição em Portugal, apresento as minhas mais do que suspeitas opiniões sobre este meu filho bem-amado:
- É de leitura fácil e rápida, devido ao seu ritmo frenético;
- É capaz, pela semelhança com a anagnorise, de surpreender o leitor;
- Personagens, espaço e tempo não estão desactualizados;
- Está bem contado e bem escrito;
- Tem fragmentos muito bons, cuja simplicidade pode, no entanto, ofuscar o seu mérito, pelo menos naqueles espíritos que não sabem como é difícil escrever simples.
Posto isto, nada como oferecer ao eventual leitor fragmentos para que possa ajuizar do mérito da narrativa (e da presunção e da arrogância do autor), esclarecendo desde já que só o não disponibilizo na íntegra por motivos contratuais.
O início introduz, desde logo, a eterna problemática do Tempus fugit sem pretensiosismos nem didactismos:
“Eis Setembro, que chega fresco e risonho como a Primavera, após outro Agosto infernal, de calor e de incêndios. Não nos iludamos: nada voltará a ser como dantes. Setembro jamais será Abril, mesmo que este Sol e esta luz nos queiram convencer de que a Primavera dura todo o ano e a juventude é eterna, mesmo que a cidade pareça a mesma, com o castelo indiferente à passagem dos séculos e o Lis correndo sempre ao encontro do irmão gémeo, para juntos procurarem o mar, sonho de todos os rios.”
Reparou o leitor inteligente que evitei “meter-lhe Lisboa pelos olhos dentro”, uma vez que as alusões à passagem do tempo são metafóricas e o nome da cidade será descodificado a partir da sua cultura – se não sabe que cidade com castelo é banhada pelo Lis, puta que o pariu. (Se escrevesse para imbecis, teria de explicar que o regresso à Primavera da vida na meia-idade, blá, blá…).
Imediatamente são introduzidas as personagens principais e procede-se à sua descrição en passant. Notar-se-á que embora seja uma narrativa na terceira pessoa, o narrador está presente, não prescindindo de um discurso judicativo:
“Repare-se naquele casal que passeia, braço dado, pelas ruas antigas. Pela maneira de olhar, vê-se bem que não são turistas vulgares, daqueles que arrumam cidades, gentes e paisagens em álbuns de fotografias. Não, eles enchem os olhos com o presente em busca de vestígios de passados já esbatidos nas suas memórias, ele atento às ruas e às casas, ela procurando sinais de reconhecimento no rosto de cada um dos transeuntes. Aqui e agora, o cavalheiro compara a cidade de hoje com a que conheceu quarenta anos atrás, quando cá chegou, vindo da aldeia natal, para fazer o Curso Industrial. Ela é uma mulher vistosa, demasiado vistosa mesmo, daquelas que nos obrigam a voltar a cabeça para nos certificarmos de que também o traseiro é digno da dona. Sim, é, é um rabo perfeito, bem apertado em calças justas e à meia-perna, corsárias, chamam-lhes, é um cu soberbo, empertigado e bamboleante por força dos saltos demasiado altos.
Seguimos em frente com uma réstia de inveja do felizardo que agora lhe dá o braço, atribuindo mentalmente essa ventura a carro e fortuna. Bem enganados estamos, neste caso não é verdade, bem pode o nosso ego sofrer, que mulheres como ela são para nós: como esta história mostrará, não é o interesse material que une a loira espampanante a um homem discreto como o António.
Deixemo-los então passeando pela formosa Leiria neste Setembro fresco e risonho, deixemo-los sonhar com a Primavera, acreditar na ternura e nos prazeres da cama, talvez mesmo no amor, e prossigamos, invejosos, o nosso caminho e a nossa história.
Neste momento, o leitor experiente julga que conhece a estrutura e, talvez, a temática, não precisando de ler mais. Desiluda-se. Não sou assim tão previsível. Se quer acompanhar a história, terá de a ler.
E o fim? Fecha o círculo e justifica o título da obra:
“Ao fundo, de costas para o Lis, atrás de uma mesa tosca, sem funil nem megafone, estava de pé um homem de boina, aspecto de cavador. Sobre a mesa, em duas caixas de sapatos, escorpiões agitavam caudas e tenazes em tentativas frenéticas para fugir do cativeiro. Sempre que algum o conseguia, caindo sobre a mesa, as mãos encortiçadas do curandeiro seguravam-no, pegando-o entre o polegar e o indicador. Então levantava-o à altura dos olhos, deixava o medo e a repugnância crescerem entre a assistência, e voltava a colocá-lo na caixa de onde se evadira.
As pessoas aproximaram-se, mas não demasiado, e observavam, curiosas e horrorizadas, os homens tecendo comentários sobre o que sucede à pessoa que tem a desdita de ser picada pelo ferrão de semelhante bicho, as mulheres apertando os filhos pequenos ao peito ou, se mais crescidos, agarrando-os firmemente pela mão para que a curiosidade juvenil os não fizesse aproximar demasiado, advertindo-os firmemente sobre os perigos deste inimigo da humanidade, eles e elas recordando o velho aforismo: Se o lacrau voasse e a víbora visse, não havia ninguém que no mundo existisse.
Quando a multidão se adensou, o curandeiro falou. Segurou um lacrau à altura dos olhos, para que todos o vissem bem, das tenazes que se agitavam convulsivamente ansiando por presa até ao ferrão que procurava em vão vítima, e disse:
— Este bicho é mau e nojento, mas bem pior é o que alguns de vocês têm dentro do próprio corpo, talvez sem ainda o saberem.
O silêncio arrepiou a multidão, espraiando-se como água agitada por pedrada até às últimas filas e retrocedeu outra vez até ao centro. Então o curandeiro falou de novo:
— Uma picada mata, uma picada cura. A picada do lacrau mata a pessoa... ou o escorpião que a devora. É preciso saber escolher. Lacrau macho para cancro fêmea, lacrau fêmea para cancro macho. Quem quer experimentar?
(Tantos anos se passaram já! Contudo, fecho os olhos e continuo a ver, fascinado, os escorpiões passeando pelas mãos calejadas do curandeiro, ressequidas e tostadas por uma vida de trabalho de sol a sol, o olhar honesto de quem recusa usar o seu dom para fugir à enxada, com o brilho de quem está disposto a sofrer e a morrer pela sua verdade, mesmo que ela resida no ferrão peçonhento de um lacrau, macho ou fêmea, tanto faz. Ah, como o compreendo, eu que também tive uma verdade, venenosa como aqueles escorpiões, e a perdi algures no tempo, juntamente com a minha mocidade!)
A Ritinha, Lúcia de seu nome artístico, que parecia mais atenta aos transeuntes do que às memórias do António, trouxe-o de volta ao tempo presente, dizendo a despropósito:
— A Nela, a minha cunhada que se enforcou, já te falei dela, sim, a que deixou como últimas palavras "A vida é uma merda", não tinha razão. Acho que a vida pode ser, mas não precisa de ser uma merda. Como dizia o teu curandeiro, uma picada mata, uma picada cura. Depende da escolha.
Sorriu-lhe: — O difícil é atinar com os lacraus certos.”
Em breve, seguir-se-ão outros escritos sobre narrador, personagens, espaço, tempo, linguagem, estilo, etc., tudo no mesmo tom, que o povo tão bem descreve no dito “gaba-te, cesta, que amanhã vais para a vindima”.
Do lacrau e da sua picada foi publicado como e-book em finais de Maio de 2007 pela Edito n Web (http://www.editonweb.com/); custa 4,5 euros e, como calculam, não espero enriquecer com os direitos de autor – o que não aumenta as qualidades nem diminui as imperfeições do romance.
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