Avança sonolenta a noite, as horas demoram a passar, medidas pelas peças feitas, etiquetadas, empilhadas, os minutos contados pela máquina que incessantemente abre o molde, acende a luz verde, há que rapidamente correr a rede de protecção, extrair a peça escaldante, soprando-a com a pistola de ar comprimido, segurá-la ao de leve para evitar as queimaduras, inúteis as luvas distribuídas já bem esburacadas, depois rapidamente fechar a rede de segurança, logo a luz avisadora passa a vermelho e a máquina gigantesca injecta plástico a centenas de graus, os breves segundos em que água fria o arrefece no interior do molde para que solidifique são gastos a aparar com navalha as rebarbas da peça anterior, a soprar nos dedos para aliviar as queimaduras, e eis que a máquina apita imperiosa, já outra peça está pronta a sair, os olhos sempre atentos aos mostradores, se a temperatura baixa, a máquina começa a estragar, se sobe, o plástico fundido pode explodir nas nossas mãos ou na cara. Raro é o mês sem acidente, raros são os camaradas mais velhos com todos os dedos nas mãos, um ou outro já maneta.
Somos nove contando com o chefe de turno, trabalhamos à vista uns dos outros, mas estamos sós, não há conversas, nem mesmo para espantar o sono que causa erros, e aqui os erros pagam-se com o corpo. Respiramos o cheiro do plástico derretido, penetram-nos até às entranhas os ruídos dos moldes a abrir, do bater seco das grades de protecção, os silvos do ar comprimido a sair das pistolas, sempre, acima de tudo, o zumbido dos potentes motores eléctricos, o troar grave dos compressores.
Como sacerdotes servimos esta nova divindade, fria e implacável como os antigos ídolos, como eles a exigir dedicação total, atenção permanente, sacrifícios frequentes -- queimaduras, dedos amputados, mãos até. É ela que impõe o ritmo, segundo os seus humores, é ela quem mais ordena na fábrica, por isso nem quando o chefe de turno se aproxima a desfito e às suas luzes, ouvidos sempre atentos ao seu trabalhar, mãos lestas a abrir a grade de protecção do molde, a extrair e rebarbar a peça enquanto quente, que fria não dá.
-- Estás atrasado, não vais conseguir fazer tanto como as mulheres do turno da manhã!
-- Porra, elas trabalham duas em cada máquina e com matéria prima boa, a mim calham-me os desperdícios de plástico triturados. Ainda tresandam a peixe podre!
-- É só teres mais atenção à temperatura.
Respondo com palavrões, que interrompo para desabafo: -- Lá está esta merda a estragar outra vez! E reclamo matéria prima boa, da que está no armazém e fornecem às mulheres no turno de dia.
Nega. Ordens do patrão. Com a crise do petróleo, ganha mais com a valorização do material do que com as peças fabricadas. Especulação, portanto.
-- Com o frio da madrugada, a máquina estraga menos. Se te esforçares, ainda recuperas.
-- Esforçar, ainda mais? E corro já escada acima até ao topo da máquina a empurrar com cabo de vassoura os detritos de plástico reciclado, moídos na máquina ao lado por miúdo de catorze anos que deixou a escola. Com cuidado, que o sem-fim é voraz e parece apetecer-lhe a minha mão, o braço até...
-- Olha que a distracção é a morte do artista, ainda me grita o encarregado, já a ajudar camarada velhote, dos seus quarenta anos, que bêbedo que nem cacho não dá vencimento à máquina que cospe galhetas umas atrás das outras. Vale-lhe a amizade do chefe de turno, seu vizinho, do encarregado geral a quem, dizem, poda a vinha.
Evito pisar o cimento sempre molhado da água das mangueiras de arrefecimento que volta-não-volta se desenfiam. Aqui tudo trabalha a alta voltagem. Na semana de férias que tive pelo casamento, morreu camarada electrocutado na minha máquina. Causa da morte segundo a certidão de óbito passada pelo médico do seguro: congestão. Para fugir à indemnização por acidente de trabalho.
Há-de vir o tempo em que trabalhador terá direitos, saberá como reivindicá-los, protestará e será ouvido. Não ainda neste Março de 1974. A máquina não dá choque, provou-mo o encarregado com medição por multímetro. Sem me convencer, que já levei uns bons esticões, talvez apenas quando está de mau humor, por isso calço sola de borracha e evito pisar o cimento molhado quando lhe toco.
Aí pelas quatro da manhã volta o chefe de turno, apenas diz Vai comer a bucha, e logo toma conta da minha máquina, aproveito a meia hora de repouso para dormitar sobre sacos de matéria prima, apesar da comichão que faz, junto do compressor para aproveitar o calor que irradia, sempre a medo, que já explodiram alguns em fábricas da vizinhança.
Pelas oito, começam a chegar as mulheres, olham-nos como a presas, uma boazona deixa escapar Aí, não fosse eu comprometida..., a boca sabe-me a sono, o corpo está exausto, só quero que me substituam depressa para correr e apanhar a camioneta, chegar a casa, deitar-me e tentar adormecer, nada fácil quando toda a gente está acordada e entende que a noite se fez para dormir...
FOTO: outra fábrica, hoje ao abandono. A minha deu lugar a um centro comercial...