Número total de visualizações de páginas

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O sindicato e eu

Assim que fui colocado pela primeira vez tratei de me sindicalizar. Entendia ser essa obrigação de cada trabalhador. E, na minha ingenuidade, até li e concordei com os estatutos do sindicato.
Levei a sindicalização a sério. Apresentei lista, candidatei-me a delegado sindical na escola em que então estava colocado — e perdi.
Paciência. Tal não arrefeceu a minha fé sindical.
Até que, após greve selvagem, os professores de uma escola de Lisboa foram despedidos.
Logo o sindicato estendeu asa protectora, comprometendo-se a pagar-lhes os salários, conforme estabelecido nos estatutos.
E eu aprovei.
Mas, poucos meses depois, a pretexto de uma lacuna no boletim de candidatura (lacuna que o certificado de habilitações anexado esclarecia), me vi no desemprego. Sem economias, com renda de casa elevadíssima— as casas para arrendar eram então raras como a chuva neste Outono —, família a meu cargo, nada de empregos, de trabalho naquela época em que o país e a economia andavam pelas ruas da amargura.
E lá vou eu ao sindicato. A querer que pressionassem o Ministério a reapreciar o meu boletim de candidatura. Não valia a pena. Havia milhares como eu, tratava-se de manobra do governo para diminuir drasticamente o número de professores provisórios. Processar o Ministério? Para quê, se lá não havia duas pessoas a dizer o mesmo?
Então, e o subsídio de desemprego, que consta dos estatutos e foi já atribuído aos colegas da escola X?
Riram-se. O sindicato não tinha verbas para tal, diziam. Em funcionários, assessores, equipamentos, rendas, ia-se todo o dinheiro das quotas.
Fui colocado meses mais tarde. E uma das primeira coisas que fiz foi cancelar a minha sindicalização.
Passaram muitos anos. Um amigo, delegado sindical, convenceu-me a voltar a aderir ao sindicato. Fizemos greve prolongada, bem organizada. O governo ia ceder. Depois de tantas greves simbólicas, em que perdíamos o salário para que o PC marcasse posição, finalmente uma que íamos ganhar. E uma manhã, ao entrar na escola, soube que o sindicato, o Teodoro, nos tinha novamente traído, pondo fim à greve sem nos ouvir.
Outra vez cancelei a sindicalização.
Há quem nunca aprenda certas lições. Como eu.
Nos tempos negros da Maria de Lourdes e da sua famigerada avaliação fui a uma reunião sindical, pedi o papéis e voltei a ser sindicalizado.
O dirigente sindical que me inscreveu  bandeou-se para o Ministério da Educação.
E eu continuei a pagar a quota, 1% do salário, até à aposentação.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Da violência nas escolas

Mário Nogueira, dirigente vitalício do meu sindicato, voltou ontem a envergonhar-me publicamente. Foi em declarações que prestou à TV a propósito da agressão a um aluno por parte de um professor de TIC.
Para Mário Nogueira, não há presunção de inocência quando se noticia que um professor bateu num aluno. Essa presunção fica, talvez, reservada para os políticos corruptos, seguramente para os pais que agridem professores e funcionários. Nem importa, antes de mais, apurar os factos, aguardar os resultados do processo disciplinar que foi ou vai ser instaurado.
Adiante.
O que me envergonhou mais, o que me enojou, foi ouvi-lo a retomar a velha discriminação contra os professores não profissionalizados.
(Tantos anos após o 25 de Abril, o velho preconceito, de que também  eu fui alvo, primeiro miniconcursiano, depois provisório, continua subjacente:
— O colega é efectivo? Não? Então não devia estar a dirigir esta reunião!
— Vá-se queixar à direcção, que me nomeou!
Mas doía. E a prova é que não esqueci.)
Agora Nogueira com conversa parecida. Como se na formação para a profissionalização se aprendesse a não perder a cabeça! Como se a formação fizesse uma qualquer triagem segundo as competências científicas e pedagógicas, a adequação aos requisitos da profissão, à saúde mental, até!
Como se não houvesse no activo alguns profissionalizados que jamais deveriam estar à frente duma turma!
Como se as condições de trabalho em certas escolas não fossem suficientes para qualquer um se passar!
Não. O problema é que o colega, que até pode ser engenheiro informático, não tem a profissionalização.
Já quanto à agressão de Valença, feita por pai orgulhoso do feito, tanto que até organizou contra-manifestação com a tribo, nem uma palavra. Bater em funcionários e em professoras e professores, tal como em polícias, não tem idêntica gravidade. Não merece que se pronuncie.
Porque neste caso, seguramente, a culpa é dos agredidos. Mesmo se profissionalizados.

domingo, 13 de outubro de 2019

Pedantice

No supermercado, estendo uma alface para o empregado das pesagens:
— Bom dia! Pode-me pesar...
E ele, bem humorado:
— Sim, mas duvido que o senhor consiga subir para a balança!
Tenho mau feitio. E não gosto de ser corrigido por um mocinho ainda imberbe. Talvez para depois se gabar de ter gozado com o velho.
De modo que...
— Recorri à elipse, processo linguístico que permite omitir um constituinte frásico, reconstituível a partir do contexto. No caso vertente, como lhe estendi o saco com a alface, era óbvio que o objecto do pedido de pesagem, pelo que o não realizei foneticamente.

Assim mesmo, o discurso todo. Para que soubesse que ainda está muito verde para gozar com os velhotes.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Putas e vinho verde

Estava no início de carreira, professor provisório sem habilitação própria, miniconcursiano, como nos designavam pejorativamente os colegas já instalados, e coube-me horário nocturno.
A tentar esconder o pavor, olhei para aqueles alunos, todos mais velhos do que eu, e comecei a aula de apresentação. 
Ia talvez a meio do tempo lectivo quando aluno mal encarado, olhos turvos pelo nevoeiro, abre a porta da sala, entra e senta-se sem dizer água-vai nem água-vem.
Não ia perder a face logo na apresentação!
— Boa noite! 
Nem me olhou.
— Boa noite! E, já agora, manda a boa educação que ao entrar atrasado bata à porta, peça licença para entrar... Como o não fez, e já se instalou, quer apresentar-se?
Olhou-me com desprezo.
— O que eu quero é putas e vinho verde!
A turma, do major reformado da Força Aérea à freira do hospital vizinho, olha-me na expectativa.
E eu, em tom duro, aparentado uma coragem que bem gostaria de ter:
— Então enganou-se na porta, que isto não é nem taberna nem casa de putas! É uma sala de aula, e se quer ficar é para se portar com respeito e educação!
Deitou-me olhar assassino, do género lá fora ‘comezas’, levantou-se e foi embora.

Mas não: nem dessa vez, nem em nenhuma outra, fui espancado por alunos. E aquela ave nunca mais apareceu nas minhas aulas.