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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Percevejos

 Apesar de nado e criado em humilde aldeia, em condições de higiene e de viver que hoje seriam insuportáveis, foi apenas em Lisboa, então a capital do império, que vi pela primeira vez percevejos.

Tinha chegado recentemente, e fiquei alojado em lar na Rua do Século, em frente ao jornal do mesmo nome. Era um prédio antigo, e, apesar de oficialmente ser instituição dependente da igreja, lá funcionava com completa autonomia uma espécie de república, dirigida democraticamente pelos jovens moradores, quase todos estudantes trabalhadores.
Dormia profundamente quando o meu amigo Serafim, hoje a viver nos Açores, me acordou. Com dificuldade, que então tinha o sono pesado. Queria que eu fosse ver.
Ver o quê, pá? Deixa-me mas é dormir, que não são horas de ver nada!
Ele insistiu. E sem outra forma de voltar a dormir, acompanhei-o ao quarto, onde o colega, o Rogério, ressonava tranquilamente. E sobre o rosto, o pescoço, os braços destapados, vi, com a claridade que entrava pela janela, um formigueiro de bichos repelentes, vermelhos de sangue roubado, que passeavam inchados, tranquilos como operários em linha de montagem. Percevejos! Um nojo, para mim, rapaz do campo, habituado a quase tudo o que era porcaria.
Com a luz acesa, os percevejos desapareceram quase instantaneamente. Nessa noite, o Serafim dormiu na tábua de passar a ferro do corredor, uma robusta mesa. Eu, perdido o sono, acendia volta-não-volta a luz, coçava-me. Logo de manhã, aspirei cuidadosamente o quarto, fui a uma drogaria comprar “Gesarol”, que apliquei em volta dos pés da cama e em todas as fendas do sobrado. Não voltei a ver percevejos, a praga das famílias reais, até anos depois, na tropa quando fazia a especialidade na EPAM, no Lumiar. Na balbúrdia revolucionária que se vivia, feita de boatos e prevenções revolucionárias, saídas cortadas e alertas de ataques da reacção, calhou-me, apesar de instruento, ser escalado para serviço de guarda, isto para os “operacionais” – cozinheiros, padeiros, que mal sabiam manusear a espingarda G3 --, irem proteger a RTP da reacção.
Após dois turnos de sentinela, que ninguém apareceu para me substituir, fui rendido noite alta, e dirigi-me, como era minha obrigação, à casa da guarda. Sobre o rosto de camarada adormecido, passeavam percevejos, gordos e felizes…

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Ver sem óculos de pala

 Hoje, no telejornal da TVI, ouvi, com grande surpresa, um major-general português a comentar a crise na Ucrânia.

Segundo este militar, que certamente sabe muito mais do assunto do que eu, a guerra não interessa à Rússia, mas sim -- a surpresa! -- aos comandos militares ucranianos, tomados de assalto pela extrema-direita ucraniana após o golpe militar de 2014.
E duvida de que o poder político ucraniano possa controlar o sector militar, que anseia pela guerra. Ora, se o exército ucraniano passar a linha divisória que o separa dos pró-russos, como pretende fazer, aí a Rússia tem de atacar e a guerra será inevitável.
Para melhor informação, sugiro que vejam esse excerto do telejornal da TVI, salvo erro por volta das 21H. Desde já previno que não vou discutir a situação aqui, embora tenha, como cada um dos meus amigos terá, opinião sobre as causas e responsabilidades desta crise.
Mas, como é meu costume, não pretendo doutrinar, nem sequer convencer ninguém. Longe vão os meus tempos de pregador.
Quem tiver olhos que veja, quem tiver ouvidos que ouça.