Apesar de nado e criado em humilde aldeia, em condições de higiene e de viver que hoje seriam insuportáveis, foi apenas em Lisboa, então a capital do império, que vi pela primeira vez percevejos.
Tinha chegado recentemente, e fiquei alojado em lar na Rua do Século, em frente ao jornal do mesmo nome. Era um prédio antigo, e, apesar de oficialmente ser instituição dependente da igreja, lá funcionava com completa autonomia uma espécie de república, dirigida democraticamente pelos jovens moradores, quase todos estudantes trabalhadores.
Dormia profundamente quando o meu amigo Serafim, hoje a viver nos Açores, me acordou. Com dificuldade, que então tinha o sono pesado. Queria que eu fosse ver.
Ver o quê, pá? Deixa-me mas é dormir, que não são horas de ver nada!
Ele insistiu. E sem outra forma de voltar a dormir, acompanhei-o ao quarto, onde o colega, o Rogério, ressonava tranquilamente. E sobre o rosto, o pescoço, os braços destapados, vi, com a claridade que entrava pela janela, um formigueiro de bichos repelentes, vermelhos de sangue roubado, que passeavam inchados, tranquilos como operários em linha de montagem. Percevejos! Um nojo, para mim, rapaz do campo, habituado a quase tudo o que era porcaria.
Com a luz acesa, os percevejos desapareceram quase instantaneamente. Nessa noite, o Serafim dormiu na tábua de passar a ferro do corredor, uma robusta mesa. Eu, perdido o sono, acendia volta-não-volta a luz, coçava-me. Logo de manhã, aspirei cuidadosamente o quarto, fui a uma drogaria comprar “Gesarol”, que apliquei em volta dos pés da cama e em todas as fendas do sobrado. Não voltei a ver percevejos, a praga das famílias reais, até anos depois, na tropa quando fazia a especialidade na EPAM, no Lumiar. Na balbúrdia revolucionária que se vivia, feita de boatos e prevenções revolucionárias, saídas cortadas e alertas de ataques da reacção, calhou-me, apesar de instruento, ser escalado para serviço de guarda, isto para os “operacionais” – cozinheiros, padeiros, que mal sabiam manusear a espingarda G3 --, irem proteger a RTP da reacção.
Após dois turnos de sentinela, que ninguém apareceu para me substituir, fui rendido noite alta, e dirigi-me, como era minha obrigação, à casa da guarda. Sobre o rosto de camarada adormecido, passeavam percevejos, gordos e felizes…