Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Paz e guerra

 O meu artigo no magazine Synapsis. Para receber um exemplar gratuito do magazine, enviar pedido para

synapsis11@gmail.com


PAZ E GUERRA

Conta Fernão Lopes que, quando o Mestre de Avis se apresentou armado no paço da rainha com a intenção de matar o Conde Andeiro, D. Leonor Teles, desconfiada, protestou: bom costume têm os ingleses, que em tempo de paz andam desarmados e usam vestidos e luvas como as donzelas; mas na guerra fazem bom uso das armas, como toda a gente sabe.

O Mestre de Avis retorquiu que isso era porque os ingleses tinham amiúde guerra e poucas vezes paz. Já nós, que temos amiúde paz,  e poucas vezes guerra, se não usássemos armas em tempo de paz, não as poderíamos suportar em tempo de guerra.

O predomínio da paz em Portugal, constatado pelo futuro rei D. João I, marca, entendo eu, a cultura e a maneira de ser portuguesas. Enquanto os povos do centro da Europa viveram e vivem quase permanentemente em guerra — a titulo de exemplo, as guerras púnicas, o genocídio da conquista da Gália por César, as guerras dos 100 anos, dos 30 anos, as campanhas napoleónicas, a primeira e segunda guerras mundiais, a guerra da Jugoslávia — ao longo da nossa história, não apenas nos seus nove séculos como nação independente, mas muito antes, vivemos quase sempre em paz. É certo que q romanização envolveu escaramuças, as invasões bárbaras e depois a árabe e a reconquista cristã fizeram correr sangue em períodos relativamente curtos; fizemos guerra no Norte de África, e depois, com os Descobrimentos, um pouco por todo o Mundo, mas, à escala das outras nações da Europa e dos EUA, em duração e em mortandade, não se me afigura descabido defender que a afirmação do Mestre de Avis, nós temos amiúde paz e poucas vezes guerra, tem sido uma constante ao longo da nossa história e, arrisco-me a dizê-lo, pré-história: não têm sido encontradas por cá as valas comuns pré-históricas que abundam no centro da Europa.

Bem pode Camões pedir a “tuba canora e belicosa”. Com raras excepções, como a conquista de Ceuta, em 1415, as batalhas na Índia, a guerra colonial, somos mais de paz que de guerra, ao contrário dos anglo-saxónicos e seu descendentes, dos germânicos e eslavos. E quando a guerra nos chama, nos obriga a participar, nem sempre o fazemos entusiasticamente, como nesta cantiga de escárnio e maldizer, do século XIII, (CBN 1470) em que o trovador nos diz (adaptação minha):

D. fulano, que eu sei 

Que aprecia a liberdade

Vede o que fez na guerra

(Sabei-o por verdade)   

Logo que viu os ginetes [cavaleiros árabes vindos para a jiade]

(...)

Alçou o seu rabo

E foi à sua vida 

Em Portugal 


Não faltam exemplos na nossa história e na nossa literatura a comprovar que gostamos tanto de guerras como um cão de roer ferro: “contrariados, mas vamos”, no dizer no capitão Vasco Lourenço,  durante a guerra colonial; prontos a “cavar”, como no fado do Cavanço, cantado pelo nosso Corpo Expedicionário Português (CEP) nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (História de Portugal, org. José Mattoso, VI vol., p. 518)

Nesta vida de cavanço,

A cavar, como se vê,

Se os boches dão um avanço,

Cava todo o CEP.


Apenas quando a guerra é nossa, naquilo que é nosso, como na Reconquista Cristã, ou em Aljubarrota, ou quando nos capitaneiam os terríveis Almeida e Albuquerque, ou quando é a liberdade que está ameaçada, como nas guerras liberais, aí nos envolvemos com bravura. De resto, pugnamos pela paz.

Por isso me espantou a sanha belicista que recentemente assolou o país, e, sobretudo, o envolvimento apaixonado de muitas mulheres. Pouco faltou para exigirem, se é o que o não fizeram, a nossa participação directa na guerra que corre entre a Rússia e a Ucrânia. Sem serviço militar obrigatório, não receiam mandar os namorados, os companheiros, os maridos, os filhos para a morte, para a mutilação, esquecendo, na sua fúria guerreira, quais novas padeiras de Aljubarrota, que a guerra é sempre injusta, sanguinária, cruel, má para todos, e que com a globalização pode cá chegar quando menos esperam, na forma de mísseis, ou de radiação, ou até de ataque marítimo.

Se o conflito não evoluir para guerra nuclear, como pode muito bem acontecer, e destruir a civilização, fazendo os sobreviventes recuar à pré-história, ucranianos e russos, filhos da mesma cepa torta, terão de se entender e, como no título do romance de Tolstoi, falar de guerra e paz; nós, passada esta fúria belicista, em boa parte empolada pelos media, continuaremos a falar de paz e guerra – dos outros, nos países dos outros, por causas que lhes são idiossincráticas.

Porque somos isto e aquilo, dirão as gentes mais aguerridas; ou porque sabemos, como magistralmente o clarifica o Padre António Vieira (1668), que


“É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades em que não há mal nenhum que ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro: - o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.”

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Ida às enguias

Resguardado na adega, após uma semana de chuvadas intensas, constantes, como as havia antigamente, dessas em que nada se podia fazer no campo, o meu pai, grande amigo de patuscadas, convidou o meu tio Zé para irem às enguias: Com este tempo, o guarda-rios passa o dia na taberna do Sulpício.

— Não está tempo para isso, chove a potes… Encharcamo-nos todos, não nos livramos de pneumonia...

O meu pai, olhando para o céu: — Vem aí uma aberta, esta tarde não chove, sentenciou entendido.

E eu, fartíssimo de estar fechado em casa nessas férias de Natal, pedi para ir também, que me cheirava a aventura.

Na minha terra não há cursos de água, pelo que logo após o “jantar” nos metemos ao caminho, capuz feito de saco de serapilheira, botins de  borracha, cestos para apanhar as enguias nas valas da Ribeira do Pereiro. A meio do caminho, na Salgueira, deu em chover torrencialmente. 

— É melhor voltarmos para casa, vai ser toda a tarde assim, disse o meu tio avisadamente, vendo a escuridão do céu.

E o meu pai, talvez por espírito de contradição, seguramente por teimosia: — És é maluco, estamos quase lá, a chuva já passa, chuva civil não molha militar, e tretas do género.

Avançamos, a atascarmo-nos na terra encharcada, a escorregar pelas serventias e caminhos lamacentos. Chegámos às Cobradas. Lá em baixo, por entre as cortinas de água que desciam do céu para a terra, nem se avistava a Ribeira do Pereiro.

O meu tio, mais ajuizado, disse que não prosseguia: Ainda caio e parto uma perna, fico inválido, e tenho de sustentar a família. Não vou.

O meu pai teimava. Afinal, era só descer aquelas ravinas…

— E depois metes-te dentro das valas, com água por baixo e por cima? És é maluco!

Era. E teimoso. E odiava alterar planos. Tal e qual como eu.

Perto, havia um palheiro sem paredes. O meu tio abrigou-se lá, — Daqui não saio enquanto não deixar de chover. O meu pai prosseguiu, eu atrás. Mas as botas de borracha  escorregaram na lama da ravina, caiu e rolou por terra. Voltou para o palheiro.

— Eu não te disse?

Desculpou-se com as botas. E estendendo-se sobre os caules de milho, logo começou a ressonar, sempre sonolento e exausto, de noite padeiro, de dia agricultor. Todas as noites era o mesmo fandango: a minha mãe, logo às onze da noite: Acorda, Afonso! Ele nada. Ela insistia. Abanava-o, chamava-o, mas o meu pai, que dormia três ou quatro horas por dia, nem reagia. Lá para a meia-noite, hora a que era suposto “pegar”, começava a rabujar. E, finalmente, já  atrasado, levantava-se, retirava a pequena maleta de couro onde guardava o dinheiro da venda do pão do prego na parede, punha a trabalhar a motorizada Mondial, e fazia-se à escuridão da noite, deixando-no receosos de que, mal acordado, caísse em barranco nas curvas de Cós e por lá ficasse estendido toda a noite.

Como aconteceu algumas vezes. Culpa do fantasma que lá o esperava para o assombrar, de pau que se metia nos raios, do raio do vinho — a sorte de um homem é escapar, dizia, e a sorte só o desamparou muito mais tarde, numa manhã em que morreu debaixo do tractor.

Fora do palheiro, a chuva incessante, densa, fundia vinhas, cabeços, carreiros, os próprios pinheiros à nossa volta, numa mesma névoa, como se as nuvens tivessem descido à terra, o que, por lá sucede frequentemente. Escurecia rapidamente. Farto de esperar por aberta, certamente desejoso de chegar a casa e se enxugar à lareira, o meu tio acordou o meu pai. Com as dificuldades costumeiras: — O quê? Onde? Deixa-me mas é dormir!

Lá acabou por se levantar, rabugento. Tarde perdida, sem enguias, mas molhados como elas. E como enguias, escorregámos quase às cegas pelos carreiros barrentos, subida após subida até à aldeia e depois a casa, logo a minha mãe, vendo-me encharcado como pinto, ralha: Tira-me já essa roupa e vem aquecer-te ao lume!, e para o meu pai, Vêm bonitos, vêm! Que falta de juízo, e levares o garoto com este temporal, sabendo como ele é enfermiço! Amanhã cai estar de cama outra vez!

Não fiquei doente. Mas, fosse do que fosse, nunca mais o meu pai me levou às enguias.



FOTO: uma meia dúzia de anos depois. O meu pai, orgulhoso do atomizador Fontan que comprara recentemente, o meu tio Zé, o meu primo Fernando, e o meu irmão Afonso montado na nossa motorizada Mondial. Por volta de 1968. Não apareço porque fui o fotógrafo.