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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

As criadas

Nos anos 60, em Leiria, abundavam as criadas de servir. Em restaurantes, tascos, pequenos negócios, casas de hóspedes de estudantes, nas casas particulares, elas, para além de assegurarem todo o serviço que as patroas não podiam ou não queriam fazer,  davam-lhes basto assunto de conversa: não sabiam fazer nada, tinham de as ensinar e manter debaixo de olho não fossem elas meter-se debaixo do magala que rondava a porta, do patrão, até dos filhos adolescentes…


Iam-nas buscar às aldeias vizinhas, crianças ainda, acabada a quarta classe ou antes até, ordenado bem regateado, coisa de nove ou dez escudos por mês, cinco cêntimos de agora, pago aos pais, que naquela época de miséria assim se livravam de boca a comer — o que fazer aos filhos e, sobretudo, às filhas naquele tempo em que sem contraceptivos abundavam tanto quanto o pão escasseava?

Quando saíam juntas, nas idas diárias à praça, ao talho, à mercearia, as senhoras para exibir o seu estatuto de patroas, além de escolher e pagar, as criadas para carregar, os olhares dos transeuntes, as atenções dos vendedores, desviavam-se invariavelmente das matronas rechonchudas, pesadas no aspecto e no trajar, para as criadas, em quem qualquer trapo assentava bem e realçava a graciosidade juvenil. 

Então, a revolta interior das senhoras evidenciava-se nos modos ríspidos, nas palavras azedas que sem outro motivo dirigiam às serviçais, agravava-se ao vê-las radiosas, como se a servidão doméstica se evaporasse…

Importava pô-las na linha, marcar em público a diferença social, obrigá-las a sair com o avental de serviço.

E perante as recusas, bem regadas com lágrimas de vergonha:— Ai pões o avental, pões! Era o que mais faltava, ainda pensam que a criada sou eu e tu a patroa!

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

25 de Novembro de 1975 (reposição)

  Vivi o PREC (Processo Revolucionário em Curso) e o Verão Quente de 1975 com muito medo e uma arma na mão. Sempre que o meu quartel entrava de prevenção rigorosa, o que sucedia todas as semanas, deitava-me vestido e calçado, cinturão com cartucheiras carregadas, G3 com bala na câmara. Era muito influenciável e levava a sério as prelecções do comandante, que nos frequentes plenários revolucionários de lavagem ao cérebro antecipava ataques da reacção; apavoravam-me as medidas logo tomadas, como metralhadora antiaérea na parada para resistir aos aviões Fiat que no 11 de Março haviam bombardeado o Ralis, quartel revolucionário -- e a gritaria constante do povo que se manifestava fora dos muros do quartel soava-me como música fúnebre em filme de terror.

Boataria constante e contraditória. A televisão substituía a programação normal e a informação pelo malfadado hino do MFA ou passava ininterruptamente a estúpida da cantilena em que a gaivota voava, voava. Ambiente opressivo, sem notícias de casa e da família. Soldados enervados passavam-se e disparavam contra camaradas. Outros, apenas para saírem do quartel, voluntariavam-se para barricadas na RTP, desejosos de atirar sobre os reaças -- enquanto o comandante jurava morrer de botas calçadas quando “aí vier a reacção”. 
No 25 de Novembro foi a mim, segundo furriel miliciano com 21 anos mal feitos, que enviaram a erguer e comandar barricadas nas estradas da Atalaia e de Torres Novas, sem outras ordens, sem saber o que ia fazer, como proceder, apenas para o comando fingir que fazia alguma coisa, sem se comprometer embora.
Poucos dias depois, fui saneado, bem como todos os oficiais e sargentos milicianos da minha unidade – para minha grande alegria. 
E o valente comandante da EPAM (Escola Prática de Administração Militar), que jurava morrer de botas calçadas? Pois rendeu-se logo que os comandos de Jaime Neves, de passagem pelo Lumiar, dispararam bazucada contra a porta de armas... 
FOTO: pouco antes do 25 de Novembro. Sou o primeiro ajoelhado à direita.