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terça-feira, 25 de abril de 2023

Onde estavas, Zé, no 25 de Abril? (Reposição)

Na Marinha Grande, a dormir.

Era uma da tarde e acordou-me a minha mulher, tínhamos casado um mês antes, para me dizer que, segundo boato ouvido na padaria, havia um golpe de estado na capital. "Pois sim, deixa-me  mas é dormir", devo ter respondido, com o sono de pedra dos vinte anos, e voltei a adormecer, não sobre fofo colchão, mas no chão, que cama não tínhamos. 

Naquela semana fazia na fábrica o turno da meia noite às oito e precisava desesperadamente de dormir. Também não tínhamos televisão nem rádio. Nem mobília nenhuma, exceptuando um mocho comprado no mercado.
Vivia na Marinha Grande e trabalhava (operário de plásticos) em Leiria. Motivos: estão em Do lacrau e da sua picada. Chego à cidade ainda de dia, procuro sinais de agitação, nada. Na Praça Rodrigues Lobo encontro o Luís Marques, o mais duro e o mais valente revolucionário que conheci, também ele na clandestinidade, que não via há coisa de um ano. A notícia do golpe de estado trouxera-o até à claridade. Tal como eu, não acreditava que viessem aí grandes mudanças: "Coisas do Spínola e dos spinolistas", terá dito, e eu acreditei. E fui trabalhar, porque o patrão também não tinha ouvido falar em revolução.
Muita coisa mudou. Logo nos dias seguintes, aqueles que até então nos insultavam quando nos manifestávamos nas ruas contra a guerra colonial e o fascismo, que telefonavam à polícia quando pela calada da noite pintávamos paredes, que nos denunciavam como perigosos agitadores comunistas ao encontrarem propaganda nos quartos alugados, reconverteram-se ao vermelho, mas só no cravo na lapela, e muitos tornaram-se guardiães do regime.
Apesar deles, do dia de trabalho para a nação, do fim da luta de classes que apregoavam, o país mudou. Tanto, e para melhor, que está hoje irreconhecível. 
Aos que fizeram a revolução, agradeço a criação de condições para acabar com a ditadura, a sua polícia política, a guerra colonial, para democratizar e desenvolver. Embora, não poucas vezes, tal ter sido conseguido contra eles -- mas, em dia de fes não é bonito lembrar tais coisas. 
Quanto ao povo, esse está nas praias, aposto, a festejar feriado a que dá tanta importância como ao 5 de Outubro, ao 1 de Dezembro, à Nossa Senhora Não-Sei-de-Quê...
Foto: nós dois, uns meses mais tarde.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Chico Buarque (reposição)

 Estávamos em 1972, havia a guerra colonial, a agitação constante nas universidades, as manifs nas ruas que o regime não lograva impedir, a música que nos chegava de fora, Brel, Simon&Garfunkel, Donovan, Chico Buarque, Patxi Andion, por cá a de José Afonso.

O meu primo, então a frequentar o Conservatório, pediu-me que comprasse bilhetes para concerto que Chico Buarque ia dar num cinema entre os Restauradores e o Marquês, esqueci o nome. Quando lhe entreguei o bilhete, 
— Compraste também para ti?
— Não. Estou teso...
Insistiu para que comprasse, quis pagá-lo ele. Recusei, e voltei ao tal cinema. Comprei o mais barato, para o poleiro, o último balcão. E lá me sentei, a ver no palco figuras minúsculas que tocavam os primeiros acordes — o conjunto do Chico (hoje diz-se banda), o MPB4. Na sala, gigantesca, uma pessoa aqui, outra ali.
Então, chega funcionário a pedir para nós, os do poleiro, nos sentarmos na primeira fila, para que Chico Buarque não actuasse para cadeiras vazias. Tive, assim, oportunidade de assistir ao seu espectáculo juntinho a ele.
Excepcional. Mas com fraca assistência, nem a banda a passar colocou a sala ao rubro. E o cantor, a determinada altura, desabafou: não sabia se as suas músicas eram apreciadas em Portugal, mas no Brasil quase ninguém as conhecia. 
Pois, cá, fora do meio intelectual, apenas a banda a passar tinha chegado às massas, embora na rádio se ouvisse muita música brasileira, eu quero buzinar o seu calhambeque e quejandos.
Ainda bem que tudo mudou. Chico Buarque, que talvez fizesse suas as palavras (creio que) de Brel, algo como não sou poeta nem músico, faço canções — conheceu no Brasil e cá a glória merecida pelo seu talento, enorme e diversificado (letrista, músico, actor, escritor), e acaba de ser distinguido com o Prémio Camões.
E eu tive o privilégio, graças à insistência do meu primo, de o ter visto no palco, tão perto que quase lhe podia tocar, quando era jovem, antes da consagração, e de me ter embevecido com a sua genialidade e a dos músicos que o acompanhavam...
(A time it was, and what a time it was, it was
A time of innocence
A time of confidences
Long ago it must be
I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you
Simon&Garfunkel, Old Friends)

Entradas de leão…

Por meados da década de oitenta, chegou à minha escola um “agregado”, ou seja,  professor já com estágio profissional, a cumprir o ano obrigatório na província.

Calhou-me, no horário, ser director de turma como, aliás, já me tinha sucedido em anos anteriores, e competia-me dirigir a reunião do conselho de turma. 

Logo a abrir, esse agregado, professor de Filosofia, ataca-me brusca e abertamente:

— O colega é efectivo?

— Não!

— Então não pode presidir à reunião!

Nunca tolerei que me falassem por cima da burra. Que puxassem de supostos galões para me diminuir. 

— Fui nomeado pelo Conselho Directivo. Se não concorda, vá lá entender-se com eles.

Prossegui com a reunião, bem consciente dos olhares escarninhos e murmúrios em apartes do “colega” que, ainda o não sendo, se sentia já “efectivo”, a julgar-se numa dessas escolas em que os efectivos se tratavam entre si por senhor doutor, cultivavam o apartheid segregando os “provisórios”, com quem nem sequer partilhavam as mesas da sala dos professores.

Constava que, nas aulas, a sua postura era igualmente arrogante e prepotente, com completo desprezo pelos alunos, que insultava e ofendia constantemente, e corria a negativas.

E um dia, estava eu na minha hora de atendimento enquanto director de turma…

— Stôr, queremos apresentar queixa do professor de Filosofia!

— Porquê? E comecei a avançar dificuldades, mais por espírito corporativo do que por vontade.

— Chamou-nos “fufas”!

— E daí?

— O stôr sabe o que é isso?

Pois não imaginava. Mas, pela proximidade fonética, seria algo fofo…

— Fufas são lésbicas!

Não sabia. Se tinham a certeza. 

— À frente de toda a turma, que pode ser testemunha, disse “Estas fufas aqui…”

Confesso que estava interiormente satisfeito. O sacana que tentara publicamente rebaixar-me, lembrando o meu estatuto profissional inferior e pondo em causa a minha autoridade para dirigir aquela reunião, que quando calhava cruzarmo-nos nos corredores da escola, ou fora dela, nem bom dia nem boa tarde, apenas me deitava um superior olhar desdenhoso que eu fingia não perceber, ali estava, ainda sem o saber, à minha mercê.

E eu a fingir deitar água na fogueira da indignação das miúdas: talvez ele também não conhecesse o significado da palavra, talvez não tivesse sido com intenção…

Elas estavam determinadas. Sabia muito bem o que dizia, era arrogante, prepotente, insultava toda a gente nas aulas… Queriam fazer participação.

A custo, convenci-as a primeiro deixarem-me tentar resolver o conflito. Convoquei uma reunião de conselho de turma — e preparei-me para a guerra, com testemunhos, factos, datas. Dei conhecimento do assunto e ordem de trabalhos à direcção e eis-me, provisório “mini-concursiano” a dirigir a reunião em que se julgavam atitudes e comportamentos do colega agregado que começara o ano a questionar a minha legitimidade para exercer o cargo.

Li a participação das alunas, dei a palavra ao réu. A arrogância habitual, sobretudo perante professores provisórios, evaporara-se. Nem negou que conhecesse o significado de fufa, nem que chamasse outros nomes pouco abonatórios aos alunos. 

Os factos eram graves, reconhecia o conselho de turma unanimemente.

Um homem caído sempre me inspirou piedade. E então, maldade suprema, fui magnânimo.

Propus uma saída airosa para o desgraçado. Na acta, registar-se-ia vagamente a matéria discutida, referida como problemas de relacionamento e de linguagem inadequada utilizada pelo professor de Filosofia em momentos de exaltação causados por desinteresse dos alunos pela matéria. Ele ira pedir desculpa às ofendidas na aula e comprometer-se-ia a moderar a linguagem. Antes, reuni com as alunas e persuadi-as com muita dificuldade a aceitar a solução adoptada e a não prosseguirem com a participação recorrendo a instâncias superiores.

O confronto entre ele e a turma foi duro, vim a saber, humilhante, que não lhe perdoavam atitudes e palavras, mas acabaram por fazer umas tréguas inamistosas que resistiram até ao final do ano lectivo, quando ele foi para Coimbra certamente para ser feliz entre iguais e a poder pisar os “inferiores”…


quarta-feira, 12 de abril de 2023

Nada de novo sob o Sol

 As notícias são sempre inspiradoras. Uma, de ontem, fez-me procurar um texto meu já antigo, de que apresento o excerto final.

Qualquer semelhança a realidade, como tudo o que escrevo, nunca é mera coincidência. [Contexto: Faculdade de Letras, anos 80]

“As aulas eram erráticas, sem planificação, ao sabor dos seus humores. O professor, sempre arrogante, autoritário, sobranceiro com os alunos. Sardónico ao falar dos colegas da área, sempre pronto a destruir as nossas respostas às suas perguntas com mordacidade cruel, num desejo infantil, assim supunha eu, de se ver venerado. Mas havia mais, como vim a descobrir quando veio a “frequência”. Que, inevitavelmente, me correu mal.


— S’tôr, quando é que entrega os testes?

— Não  entrego. E do alto da sua estatura, ampliada pelo estrado, passeou olhar de gozo pelo Pavilhão Velho repleto de alunos incrédulos, a  apreciar o efeito, a saborear o burburinho de protesto.

Depois acrescentou: — O departamento não permite, mas podem passar amanhã pelo meu gabinete para os ver e  saber as notas.

Bom, à hora aprazada lá estávamos, eu e uma colega, autêntico mulherão.

— Você, disse-me, teve onze. Espantei-me. O teste não tinha sinais de ter sido corrigido. Mas ele era o deus único e verdadeiro da linguística e eu estava, tinha consciência disso, mal preparado pela leitura apressada de fotocópias e apontamentos dispersos e desconexos. 

Onze dava para passar, era o que eu queria.

— E você, disse à boazona minha colega, teve sete.

— Sete? O s'tôr está a brincar comigo!

O s'tôr ria. E ela teimava: — O s’tor só pode estar a brincar comigo!

Com pressa para o comboio — trabalhava à noite, a cem quilómetros, estudava de dia — deixei a minha colega a insistir que  o professor só podia estar a brincar com ela. Até porque me sentia a mais, com ele a propor-lhe irem os DOIS tomar um café fora da faculdade enquanto discutiam a nota.

No dia seguinte, encontro-a na faculdade: — Vês, o professor sempre estava a brincar comigo! Tive dezassete!”

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Batalha dos Atoleiros

 Há 639 anos, neste dia 6 de Abril, o meu Rodrigo Pessanho Semedo combateu na Batalha dos Atoleiros. Eis o seu testemunho.

“Aquela batalha, a primeira em que entrei, foi também a única em que não senti medo. A cavalaria castelhana carregou furiosa sobre nós e foi destroçada por uma chuva de setas e de virotões. Voltaram à carga, para se espetarem contra uma muralha de lanças que erguíamos firmes como D. Nuno ordenara, os pés bem afastados, as pernas fortes, os corações cheios de fé em Deus, que não nos negaria aquela vitória pois lutávamos na nossa terra e pela nossa terra. E de fé nele. E prouve a Deus Nosso Senhor que de tantos cadáveres que tombaram por terra nem um só fosse português... Eu mesmo encharquei as mãos em sangue inimigo ao derrubar jovem cavaleiro leonês que se aprestava a matar a meu primo, tendo-o logo de seguida decapitado com forte fendente quando se levantava; dele tomei como despojos o seu belo bacinete, o saio de malha, a montada e o escudo, em cujo brasão leão orgulhoso atestava a origem do moço fidalgo. A meu escudeiro deixei sua contia, vestes e ornamentos, que me pareceu coisa vil e indigna de homem de armas apropriar-se da riqueza do morto como se o houvera matado para o roubar. Era então ingénuo, cheio de pruridos que a rudeza da guerra cedo esfumaria — por isso, me afastei pesaroso do terreiro, desviando entristecido os olhos da mortandade: tantos e tão jovens cavaleiros, como eu cheios de ilusões e de esperanças, a lidarem por amor de suas donas e por lealdade para com seus senhores, ali jaziam por terra, despojados de suas armas, jóias e contias, despidos de seus ricos vestidos, muitos agonizantes em sofrimento atroz, soltando gritos de dor lancinantes quando a soldadesca, entregue à vil faina da pilhagem, os virava e revirava impiedosamente como se coisas sem préstimo fossem. O destino daqueles valentes poderia em breve ser também o meu...”

Gheke Pepe Bebiam mais do que falavam