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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Sensei Vilaça Pinto no Entroncamento

Na próxima sexta-feira, 30 de Outubro, no ginásio Il Korpo, às 17 H. E no dia seguinte, sábado, estágio em Leiria.
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Abuso de confiança

Como o defunto João Gaspar Simões, tenho a pretensão de conseguir farejar o talento. Uma vez, por exemplo, já lá vão 25 anos, era eu estagiário, a minha escola fervia de indignação devido a um jornal de alunos. Entrei para uma reunião. Vociferavam escandalizadas as orientadoras, cacarejavam aprovadores os estagiários, eu suspeitosamente calado. Incomodamente calado. Todos os olhares acabaram por me cair em cima, como se o meu silêncio fosse comprometedor.
Desculpei-me: -- Ainda não vi o dito cujo...
Prontamente, um colega que sabia viver e foi longe na vida mo pôs debaixo dos olhos. Folheei, dei com um soneto, li-o em diagonal, e escandalizei orientadoras e orientados: -- Mas isto é mesmo bom!
Não caiu o Carmo e Trindade porque estavam distantes, em Lisboa. Digamos, apenas, que superior e sabiamente sovado pelas autoridades educativas de então, dei continuidade a uma carreira de desastres e de inconveniências, e alarguei o vasto leque de gente aguardando a primeira oportunidade de me escalpelizar... E foi já fora da reunião e longe de ouvidos zelosos que o meu colega de então me confidenciou: -- Como é que o poema não havia de ser bom? Se é de Bocage!
Pois eu não o conhecia, não estava assinado... Há dias, a mesma coisa. No meio de poemas medíocres, um destoava. Era muito bom... Até que leio o nome do autor: Vasco Graça Moura.
Vem isto a propósito da poesia da Ivone. Já, por várias vezes, lhe disse que tem poemas muito bons. Encolhe os ombros e diz que se trata de amiguismo. Que alguém me aponte um único elogio, a poemas ou a narrativas, em que haja amiguismo. Quantas vezes me não contorci como enguia na frigideira para evitar comentários negativos, não tendo positivos para fazer. Quantas vezes me não calei. Mas elogiar merda, nunca. Quem duvidar, que percorra o histórico deste blogue, que vá ao meu site, e me contradiga. Publicarei todos os desmentidos fundamentados.
Posto isto, repito: tem poemas muito bons. Veja-se este, acabadinho de roubar do seu blogue - que a Ivone desculpe o abuso de confiança:

O PRIMEIRO OUTONO

Foi numa noite assim
que Ceres se esqueceu da Terra.

Por debaixo das raízes e dos rios,
Proserpina deitou-se no leito de sombras.
Ainda seda, ainda memória, ainda luz,
viu os bagos de romã
caídos em redor de Plutão
que lhe estendia
numa mão o esquecimento,
noutra a eternidade.

Ivone Costa

domingo, 25 de outubro de 2009

Pastéis de Belém



Fim-de-semana na capital.

(Fotos aqui)

sábado, 24 de outubro de 2009

A idade do deslumbramento

Na foto, tirada por mim há quase quarenta anos com uma Kodak Instamatic, o meu irmão. Época em que ouvi na rádio e pela primeira vez a Ode à Noite, de Álvaro de Campos. A idade do deslumbramento. Com a beleza do Mundo e com a perfeição da poesia de Pessoa:

"Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.


Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida. (...)"

Álvaro de Campos

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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Auto-retrato

Diz a Sofia que "os meninos têm de ter o cabelo curto." Concordo, especialmente quando ele escasseia e seria ridículo deixar umas madeixas desgarradas...

Auto-retrato com Olimpus Pen, por volta de 1972, quando me não faltava cabelo.
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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O novo penteado do Miguel


Clicar na foto para ampliar

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Da Bíblia

Também a mim, a Bíblia me inspira. Assumo-o, só lamentando que a minha escrita não esteja à altura dos originais, na expressão perfeita da dor humana, do prazer, do ódio, do amor. Creio que só por má fé, ou por pérfidos interesses comerciais, se pode cuspir disparates sobre a obra que, no entanto, motiva e, no caso de Saramago, dá de comer. A ingratidão é pecado muito feio no mundo das letras. E, no que me diz respeito, chega de crítica ao mestre.
Eis um excerto do meu inédito Um amor inventado, em que inseri o sempre recorrente Lamento de Job, que comecei a apreciar graças a Camões (O dia em que eu nasci moura e pereça...) e à minha professora de Literatura Portuguesa II, Professora Doutora Lucília Pires, com quem tanto aprendi.

Capítulo 13. Entre cuidado e cuidado

(Para ler o capítulo na íntegra, clicar aqui)

...Mas, afinal, que faço eu na capela? Pois eu explico. Vim persuadido, quase obrigado pelo meu amigo João, que anda desesperado desde que a mulher o deixou, já lá vão três meses, e desde então me não larga, para que o acompanhe, o ajude, na busca da Berta. Ocorreu-lhe que na missa, rezando com fervor, poderia receber inspiração divina, algo como um pressentimento sobre o seu paradeiro, e sem coragem de vir sozinho, quase me forçou. Eu, ainda na adolescência, até passaria despercebido na igreja desta terra onde os homens apenas entram para casar, para baptizar os filhos, para funerais --- e chega bem, dirão eles, não é preciso mais. Mas o João, homem feito, com problema conjugal de todos bem conhecido, dá de imediato nas vistas: sem qualquer discrição, mesmo fingida, beatos e beatas esquecem momentaneamente as rezas mastigadas por alma de quem lá têm, viram-se ostensivamente para trás para confirmarem a sua presença, verificarem se há vestígios de lágrimas no seu rosto, não se coíbem de comentar com os vizinhos a estranheza de o ver na missa, e o bichanar percorre as filas de fiéis, sobrepõe-se ao sermão do jovem padre que se vê forçado a levantar energicamente braços e voz como se pedisse ajuda ao Alto, numa vã tentativa de recuperar a atenção do auditório...
Deixemos a coscuvilhice, concentremo-nos na prédica, não quero culpas assacadas pelo João se não receber a almejada inspiração... Aliás, parece até de propósito, as palavras do pároco poderiam sair da sua própria boca, que tanto tem sofrido --- saudades, humilhação pública, mofa, ditos e perguntas parvas:
“Até quando afligireis a minha alma e me atormentareis com vãos discursos? Já por dez vezes me humilhastes e não vos envergonhais de me insultar. Mesmo que verdadeiramente tivesse errado, o meu erro só a mim diz respeito. Mas vós levantais-vos contra mim, e me repreendeis por causa das humilhações que padeço (…) Grito contra a violência e ninguém me responde, levanto a minha voz e não há quem me faça justiça."
Então dá-se o escândalo, ainda hoje recordado: o João ergueu-se e bradou:
--- Ouviram bem o senhor prior? Se errei, o meu erro só a mim diz respeito!
Levantou-se burburinho, que prontamente cresceu e se tornou clamor: como ousava esse corno manso tomar a palavra durante a homilia, levantar a voz na casa do Senhor? E beatos e beatas, indignados com a falta de decoro, multiplicavam, não pães e peixes como Jesus fizera, mas insultos nada católicos, avançavam ameaçadores para nós, ignorando o sacerdote que os tentava apaziguar, enquanto eu arrastava para a rua o João, sempre gritando que também a ele não havia quem fizesse justiça. E chamava-lhes beatos falsos, vendo sacrilégio num sentido desabafo em local santificado, mas não dando ouvidos às palavras sagradas que acabaram de sair da boca do sr. Prior e que lhe permaneciam gravadas na memória:
“Mas vós levantais-vos contra mim, e me repreendeis por causa das humilhações que padeço!”
Da taberna em frente, do adro da igreja, até do café, um pouco mais distante, acorre o povo, atraído pela algazarra e pelos insultos vindos da portaria do templo. Puxo pelo braço do meu Job, com dificuldade consigo afastá-lo, que insiste em atirar à cara dos curiosos esse lamento de outro desgraçado como ele, destruído milhares de anos atrás sob o olhar atento do Senhor:
--- O meu erro só a mim diz respeito!
Semana após semana, ao chegar vindo do quartel, esperara encontrar a casa aberta, arejada, habitada, a Berta nos seus afazeres domésticos, a filha dormindo tranquilamente. Então bateria à porta, humildemente pediria para entrar e conversar, talvez se reconciliassem e acabassem na cama, amando-se outra vez, ou, se mulher continuasse zangada, sem sequer lhe falar, limitar-se-ia a ficar, contemplá-la, servi-la naquilo que deixasse, aguardando que lhe perdoasse.
Mas o mofo sobrepunha-se já aos cheiros a bebé, a pão, a comida cozinhada, ao próprio odor da Berta, tão peculiar, que o João sempre conseguira distinguir entre todos os outros; então, tristonho, cabisbaixo, deprimido, deixava-se ficar, sem cozinhar, sem comer, com vergonha de recorrer à casa paterna, pai e mãe desgostosos com a situação do filho, acabrunhados com a murmuração do povo, incapazes de conter remoques, ralhos e conselhos:
--- Bem te avisámos!
--- O que é que esperavas, casando à pressa com uma sopeira que mal conhecias?
--- Devias mas era ter-lhe chegado a roupa ao pêlo! Se lhe tivesses derribado uma asa, não poderia fugir assim, ainda por cima levando a tua filha! Ler mais

domingo, 18 de outubro de 2009

Outono

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Outono

Les sanglots longs
des violons
de l'automne
blessent mon coeur
d'une langueur
monotone.

Tout suffocant
et blême, quand
sonne l'heure.
je me souviens
des jours anciens,
et je pleure...

Et je m'en vais
au vent mauvais
qui m'emporte
de çà, de là,
pareil à la
feuille morte...

Paul Verlaine

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Da amizade

Quase diariamente recebo mensagens informando-me de que pessoas cuja existência desconhecia são meus amigos. Hoje, por exemplo, recebi esta:
"Olá Jose,

Os teus amigos seguintes têm aniversários esta semana. Clica em qualquer das ligações ou miniaturas abaixo para visitar os seus perfis e deixar um comentário ou mandar-lhes uma mensagem: ..."

São imediatamente apagadas, sem sequer as ler. Esta sobreviveu apenas o tempo suficiente para copiar o fragmento acima colado. É que o meu conceito de amizade é outro, muito mais próximo do de Herbert Pagani (Para ouvir, clicar aqui -- contributo do Reinaldo)

"(...) Au clair de l'amitié
Le ciel est plus beau
Viens boire à l'amitié
Mon ami Pierrot


L'amitié c'est un autre langage
Un regard et tu as tout compris
Et c'est comme S.O.S. dépannage
Tu peux téléphoner jour et nuit
L'amitié c'est le faux témoignage
Qui te sauve dans un tribunal
C'est le gars qui te tourne les pages
Quand t'es seul dans un lit d'hôpital
C'est la banque de toutes les tendresses
C'est une arme pour tous les combats
Ça réchauffe et ça donne du courage
Et ça n'a qu'un slogan : "on partage"

Au clair de l'amitié
Le ciel est plus beau
Viens boire à l'amitié
Mon ami Pierrot"

E ao luar desta amizade -- é uma outra linguagem (um olhar e tu compreendeste tudo), é como o pronto-socorro (podes telefonar dia e noite), é o falso testemunho que te salva num tribunal, é o tipo que te vira as páginas quando estás só numa cama de hospital -- eu bebo e (re)bebo, como canta o Brel.



domingo, 11 de outubro de 2009

Das eleições

Tal como nas últimas eleições, adormeci indignamente em frente à televisão logo após a apresentação dos primeiros resultados. Que falta de respeito pelos senhores comentadores, pelas brilhantes análises, pelas declarações dos responsáveis políticos de todos os partidos escutados, todos eles vencedores - talvez algum tenha confessado que não ganhou tudo o que pretendia, até que perdeu, mas eu já dormia profundamente...
Não me surpreenderia se na próxima comunicação ao país o senhor presidente puxasse as orelhas àqueles que, como eu, trocam as responsabilidades da cidadania por uma boa soneca, e mais: serei o primeiro a dar-lhe razão, toda a razão. Não é coisa que se faça, tão grave como seria urinar sobre as fotos dos outdoors da campanha - por isso os colocam tão altos! Mas a culpa não é minha, nem poderia ser, sabido que entre nós a culpa é sempre dos outros: deve-se a um qualquer efeito hipnótico que a cintilação do ecrã tem no meu inconsciente; basta-me fitar com alguma concentração a televisão, não importa o canal, e zás - é, como se usa dizer, tiro e queda. No sono profundo.

sábado, 10 de outubro de 2009

Vila de Rei



Visita ao centro geodésico de Portugal, a pretexto do festival do achigã (clicar nas fotos para ampliar).
Almoço na Albergaria D. Dinis. Serviço impecável, comida excelente, preços muito razoáveis.
Entradas (orelha, azeitonas, pimentos), sopa de peixe, achigã grelhado com molho verde e batata assada, achigã frito com açorda de ovas, burras de porco preto, branco da casa, arroz doce, salada de frutas, aguardente velha, cafés...

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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Dia do professor

(A propósito do Dia do Professor, lembrado e instigado pelo Reinaldo)

"Capítulo 7. A PROFESSORA

--- E eu, o senhor rei, as minhas barbas arrancarei!
Os alunos, desde os pequeninos da primeira classe, sentados na fila da frente, aos matulões da quarta, ao fundo, todos aguardavam sofregamente a continuação da história, bocas abertas, olhos esbugalhados:

--- E, dizendo isto, deitou a mão às barbas e arrancou-as!

Eram seus. Tinha-os rendidos à narrativa, presos pelo seu talento de contadora de histórias, tão atentos que se ouviam as moscas, escutava-se até o som da respiração dos mais próximos. Pena o ensino não ser apenas um rosário interminável de histórias, pena não fazerem parte do exame da quarta classe --- talvez assim a concluíssem mais cedo.

Chegara uma década atrás, os dezoito anos feitos quatro meses antes, inexperiente e receosa, mas certa da importância social da profissão que ia exercer e confiante em que o seu próprio exemplo daria esperança aos alunos: pobre e órfã, fora criada e tivera os estudos pagos por uma tia, já viúva, que sobrevivia alugando quartos a estudantes, inventando milagres orçamentais para que o dinheiro esticasse até ao final do mês. O Magistério Primário fora opção natural, após o curso de Formação Feminina --- o liceu era para moças de outra condição.

Idealismo da juventude e sentido de missão, reforçado ao longo do curso, necessidade moral de ajudar necessitados retribuindo o bem que a tia lhe fizera, davam-lhe, pensava, o alento e a autoridade para lutar contra a tacanhez e a miséria, não raro justificadas com a tradição e exteriorizadas em porcaria, maus tratos e subnutrição. Horrorizou-a a indigência daquela gente, inimaginável até para si própria, que sempre se julgara pobre: viviam como animais, não raro com os animais, numa promiscuidade e numa porcaria quase inconcebíveis, a miséria agravada pela ignorância.

Os aldeãos riam-se das suas ideias ingénuas, depreciavam-nas por provirem de jovem e de mulher, desconfiavam do desinteresse das mudanças que defendia, recusavam-se a alterar o que quer que fosse no seu modo de vida ancestral, talvez apenas para a contrariar, para que fracassasse e se circunscrevesse à sua função: ensinar à força de pancada aquilo que as crianças recusavam aprender, para que terminassem depressa a quarta classe e libertos da escola pudessem começar a trabalhar a sério, contribuindo para o orçamento de fome da família: “o trabalho de criança vale pouco, mas quem o não aproveita é louco”; porém, os alunos aprendiam pouco e devagar, não tanto por falta de tareia, como se criticava na terra, mas por desinteresse e, num caso ou noutro, burrice crónica, a que não eram alheias as sopas de cavalo cansado que os mantinham de pé; na escola, encarcerados durante horas, os rapazes, aguardavam impacientemente a hora de saída para apascentarem o gado pela liberdade das encostas da serra; as raparigas olhavam para a professora, fixamente, como se bebessem as suas palavras, enquanto sonhavam servir na vila, namorando ao fim-de-semana no jardim público magala que, casando, as libertasse da servidão, abrindo-lhes outros horizontes, se não se contentasse apenas em abrir-lhes as pernas...

Moços e moças arrastavam-se assim pelos bancos da escola com o prazer do cão que, à falta de melhor, se vê obrigado a roer o ferro que o sujeita, os mais velhos já barbados, elas de peito farto e trancas largas como vigas-mestras, não raro maiores e mais fortes do que a própria professora --- alguns tão crescidos que, receosa da má-língua, evitava inspeccionar-lhes as cabeças à cata de lêndeas e de piolhos.

Em cada Outubro nova fornada, nova esperança. Embevecia-se com os olhos sonhadores, apaixonados, que a fitavam ingenuamente, mas o dever obrigava-a a tentar ensinar aquelas cabecitas tontas, que depressa se desinteressavam, os olhares fugindo constantemente pelas janelas até às ladeiras da serra onde, já libertos da escola pela idade ou por terem passado no exame da quarta classe, jovens cabreiros apascentavam rebanhos, disciplinavam com pedrada certeira animais renitentes, deitavam abaixo rola que se julgava segura no alto de pinheiro --- enquanto na sala de aula os moços, enclausurados, se ainda sonhavam apaixonados com a professora, certamente a envolviam já em guerras e amores pelas serranias, defendendo-a galhardamente de lobos e de salteadores. As mães, descontentes por os filhos não chegarem a casa devidamente sovados, receosas de que os desprezasse ao ponto de os não espancar diariamente, de cada vez que a encontravam, recomendavam-lhe que não lhe doesse a mão sempre que precisasse de os educar.

Às vezes, raramente, tinha alunos interessados e diligentes, mas nenhum como a Berta, uma bonequinha de porcelana que destoava naquela aspereza serrana, a pele alva como a neve, o cabelo reluzente como mel, o trato afável e humilde, esmerada e briosa na elaboração dos deveres. Se acaso faltava, a mando da mãe, como então era uso na terra, a mestra ia procurá-la, ralhando por a não deixar ir à escola --- que lhe fazia falta em casa, retrucava a progenitora; precisava que a catraia a ajudasse, tomando conta dos irmãos mais novos e fazendo o comer, para ela própria poder ganhar a jorna quando havia trabalho. A professora ameaçava-a com a Guarda e a mãe cedia --- até nova necessidade.

Se dependesse apenas de si própria, a Berta jamais faltaria. Gostava muito da escola, dos livros que a professora, vendo o seu amor à leitura, lhe emprestava; adorava o cheiro da tinta permanente com que copiava pacientemente textos para o caderno de duas linhas, dispondo harmoniosamente as letras com a ternura com que as outras meninas acarinhavam borregos recém-nascidos; não apreciava tabuada nem contas, incomodada pelo ruído áspero do ponteiro ao deslizar pela pedra, e errava-as frequentemente, trocando a aritmética por sonhos com castelos e príncipes das histórias da Condessa de Ségur. Sentava-se ao fundo da sala, onde os colegas dificilmente a podiam perturbar, picando-a no rabo, na perna, nas costas, com os aparos das canetas de pau ou com o bico aguçado dos lápis; mesmo aí, não estava a salvo, que inventavam pretextos para saírem do lugar e, se possível, arreliarem alguém no breve percurso:

--- Minha senhora, pediam a toda a hora, posso ir afiar o lápis?, eles e elas que a natureza não dotara de paciência para estar sentados, quietos e calados durante tantas e tão longas horas enquanto de fora chegava o assobiar melodioso dos melros, baliam ao longe os cordeiros do ano, sussurrava o vento nos pinheirais das encostas, o murmúrio dos regatitos das encostas chamava-os insidiosamente como alcantis e penhascos atraíam irresistivelmente os rebanhos de cabras...

--- Se eu pudesse fazer qualquer coisa!, angustiava-se a cada perda de criança promissora, já fadada para o destino serrano. Chegara a falar com a mãe da Berta --- com o pai não havia conversas, e chegara-lhe aos ouvidos que espancara brutalmente a mulher quando, a medo, lhe transmitira sugestões da professora para um futuro diferente para a filha, entre acusações e insultos bem gritados à “conselheira”, a dar palpites sobre a sua filha, em vez de tratar da própria vida, arranjando homem que a montasse e disciplinasse. "

Inédito meu. Ler todo o capítulo

Outra República

(Confesso que prefiro esta República)

"De facto, o sacerdote queria impressionar com os seus dotes oratórios o povo ímpio e, sobretudo, as jovens que tinham vindo assistir ao casamento e, especialmente, aquela cujo palmo de cara reluzia entre a multidão, corpo tentador como o Demónio — a bela Teodora, que os rapazes, invejosos, já comparavam à República e aos seus políticos, uns sempre a entrar, outros a sair, e, tal como eles, trocando favores por libras inglesas. Constara-lhe que fora amante do seu antecessor, o nunca esquecido mas jamais saudoso Padre Vergílio e, vendo o resplendor quase divino da sua beleza, também o jovem padre, Amílcar de seu nome, ansiava já pelo pecado, sabendo bem que há sempre perdão para pecador arrependido." (...)

"Cismava que talvez a Teodora sentisse necessidade de romper com a monotonia da monogamia, ela que fora a mulher mais requestada da freguesia e arredores e imaginava-a nua, uma mulher ainda vigorosa, mais cheia do que nos seus tempos de glória, quando fora amante do próprio padre Vergílio — e de boa parte dos homens ricos e poderosos das redondezas. É certo que com o casamento parecera tomar juízo e a pouco e pouco as más-línguas deixaram de se ocupar dela, embora nunca se visse livre da alcunha conseguida na juventude, quando comparavam as suas liberalidades generosamente retribuídas às da República.
Como alma de outro mundo assombrando mortal, a sua imagem perseguia o Jaime, distraindo-o na lida do campo, nas conversas nas adegas, na cama, privando-o do sono de que carecia o seu corpo cansado. Fechava os olhos tentando dormir, mas apenas via as rijas pernas, bem feitas, o peito redondo e cheio, ainda arrogantemente alevantado, os dentes muito brancos e sãos espreitando da boca vermelha, tentadoramente aberta, a longa trança, negra e luzidia apesar dos anos — e imaginava as mamas, grandes e brancas, atraindo as suas mãos calejadas pelo trabalho, as ancas volumosas como égua garbosa carecendo de cavaleiro que a cavalgasse à desfilada, as bochechas redondas do cu que a sua barba picaria, as pernas prendendo-o como tenazes, e sempre, sempre, a coisa preta e farfalhuda, atraindo-o como o mel à mosca.
Não era apenas o Jaime que se sentia fascinado pela Teodora; se, depois de casada, mantinha à distância os pretendentes, dando tampa após tampa, humilhação após humilhação, nem por isso cessavam os olhares gulosos, espreitando-a descaradamente ou à socapa, no rio, quando tinha de aliviar roupa, na vindima, quando ao carregar poceiros à cabeça a saia subia descobrindo um pedaço da coxa farta ou quando, na eira, se esticava para chegar ao estendal... Eram sobretudo rapazes de imaginação fervente, excitados como cães que farejam fêmea no cio, que a espiavam escondidos pelas vinhas que rodeavam a casa da Teodora, onde ao longo dos anos incontáveis punhetas se bateram em sua honra."


Entre Cós e Alpedriz

A República

(Para o Reinaldo, que se queixou de que não tinha postado nada a propósito da efeméride.)

Quando, no Verão de 1910, foi preso pela tropa, em Alcobaça, acusado de dar vivas à República, a irmã correu até aos Montes: — Padrinho, empreste-me a sua égua! Não lha recusou e a mulher saiu num tropel louco, alvoroçando aldeia atrás de aldeia — Montes, Cós, Pomarinho, Maiorga, Fervença — sempre bradando Viva a República! e só se deteve em Alcobaça, estacando a égua em frente ao quartel, hoje Mosteiro:
— Morram os talassas! Viva a República!
Os militares acorreram à porta de armas, incrédulos com a provocação inopinada; depois, apercebendo-se de que era apenas uma mulher a desafiá-los, olharam divertidos para o sargento de dia, aguardando ordens.
Também ele sorriu: — Ah, mulher danada! Com gente desta como inimigos estamos feitos!
Os magalas respondiam com sorrisos aos vivas e aos morras da irmã do Ceslau, que a ouviu no cárcere e saudou a mana fazendo sair o punho através das grades, dando, também ele, vivas à República. Afinal, soldados e sargento apenas cumpriam ordens, bem no fundo talvez eles próprios também ansiassem por ovacionar a República; não havendo por ali oficial que lhes dissesse o que fazer, foram sorrindo aos gritos da moça e talvez um ou outro tenha também erguido o punho fechado, levado pelas suas simpatias ocultas ou apenas contagiado pela euforia do momento.

A algazarra atraiu uma pequena multidão, sem que desta feita a tropa a procurasse dispersar. Uns, divertidos com a ousadia da rapariga, outros solidários na causa, outros apenas curiosos, seguiram-na depois em magote, fazendo soar as vozes do arroído pelas ruas da vila, atraindo a curiosidade às janelas, toda a gente admirada com esta manifestação: à cabeça, a vigorosa moça montada a cavalo em cima da égua garbosa do padrinho, sempre aclamando a República e dando morras à monarquia, o povo seguindo-a como a líder que anuncia a revolução, até que, mais para a tarde, acabaram por dispersar, reportando depois a história de geração em geração, acrescentando um ponto aqui, outro ali.

Entre Cós e Alpedriz

domingo, 4 de outubro de 2009

Destilações

Faço o vinho, destilo bagaço primeiro, aguardente vínica depois. Outro fim-de-semana em que, não foram os cartazes, outdoors, acho eu, e nem me lembraria das eleições. Há muito que os meus votos estão destinados, o mesmo se passará com a generalidade dos eleitores, para quê a euforia da campanha enquanto o país empobrece?

(...)

Pelas auto-estradas que conduzem aos centros comerciais
telemóveis saúdam as novas catedrais
(Por aí fora, o abandono
Matas queimadas, hortas perdidas
peixes lançados ao mar
fábricas fechadas, reformas antecipadas
país de alheio dono
Desespero do desemprego, aldeias abandonadas
oh subsídio-servo-dependência!)

Não, nem orgulho ferido nem sonhos perdidos
agora já só o meu olhar camponês me magoa
como o mato à minha terra...
Chove no Verão, o Inverno aquece
E o nevoeiro não tece mistérios bastantes
outros que a miséria deste Portugal que esmorece

Só sei que de lado nenhum sairá a luz que rompe as trevas
porque já nem a noite é de breu
nem os dias resplandecem
e os amanhãs não cantam,
silenciosos como a nossa triste terra.
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