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terça-feira, 18 de junho de 2013

Efabulações

Deux Pigeons saimoient damour tendre
(La Fontaine)
De manhã à noite, era um arrulhar permanente:
-- Tu, me amas tu?
E ele, roçando o pescoço no dela, bicando-a amorosamente, rodava sobre si mesmo, com a cantoria de sempre:
-- Duvidas tu? Duvidas tu?
O dono, que os comprara no mercado, detesta animais presos, e pombos, aprecia-os a voar em liberdade. Por isso, logo que o choco começou, abriu o pombal.
Ela foi a primeira a sair. Durante dois dias não voltou, deixando o coitado, sempre apaixonado, preso sobre os ovos. Bem a chamava, nos breves instantes em que abandonava funções para se alimentar:
-- Por onde andas tu? Por onde andas tu?
Em vão. Num telhado vizinho, ela acamaradava com outro bando, parecia até não lhe desagradar a corte constante de um macho das redondezas.
Até que voltou, como se nada fosse com ela, sem contas a prestar, explicações a dar.

Daqueles ovos, nada nasceu.
Habituaram-se os dois a sair, para esticar as asas, apanhar sol e chuva nos beirados, debicar livremente no quintal.
-- Tu, me amas tu?
E ele rodava pimpão: -- Pois duvidas tu? Duvidas tu?
Nova postura, novo choco. Nasceram dois borrachos.
Era uma lufa-lufa constante a alimentá-los. Trabalhava sobretudo o pombo, pai extremoso. Que ela, mais presente embora, dava as suas voltas, ausentava-se, por vezes todo o dia, regressava ao entardecer, ar cândido, santificado, de quem jamais faz asneira. Os borrachos cresciam vorazes, exigentes, sempre esfomeados, em constante piadeira : -- Papinha para mim! Papinha para mim!
Um dia também o pombo se ausentou por mais tempo do que o costumado. Piam os pequenos que é uma dor de alma: 
-- Papinha para mim! Papinha para mim!
Os lamentos chegam a telhado próximo, onde a mãe se deleita com os arrulhos do pombo vizinho, e acode pressurosa a alimentá-los.
Nessa noite, sussurrou crítica amargurada:
-- Tu sempre fora, tu sempre fora!
E ele, furioso, rodopia brioso:
-- Que queres tu, que queres tu?
Dias depois, ele deixou de dormir em casa. Avisto-o ao longe, em telhado soalheiro, a rodopiar garboso enquanto arrulha a pombita de bando numeroso:
-- Me queres tu? Me queres tu?
No pombal, ouve-o desconsolada a pobre companheira, ela que se esfalfa a jornada inteira para alimentar a ninhada.

Os dois pombos amavam-se ternamente…

FOTOS
(1) A pomba desamparada, com ar de pobre coitada, que não merece ser trocada.
(2) Os filhotes, já espigadotes, incomodados com estes dichotes.

1 comentário:

Sofia disse...

Muito bom!