Nasci pobre, criei-me sem mimos, sem conforto, sem brinquedos. Mas a pobreza daqueles tempos não era só material: escasseavam também os afectos, ou pelo menos, gestos de carinho, manifestações de ternura, e sobravam ralhos, repreensões, bofetadas, por vezes cinturadas — castigos invariavelmente agravados pelo meu feitio orgulhoso, que me impedia de manifestar arrependimento pelas asneiras, as quais não eram, parece-me ainda hoje, nem muitas, nem muito graves.
Fiz-me egoísta, tímido, solitário, reservado. Esquivo como bicho bravio. A forte miopia, então por diagnosticar, facilitava o isolamento — a pouca distância, os vultos tinham rosto indistinto, a mesma névoa os confundia:
"É um bruto! Não conhece ninguém!" — comentava mulher de preto igual a todas as outras, cara quase escondida por lenço, mesmos pés descalços, igual cântaro à cabeça. E eu, olhos sempre baixos, refugiava-me no meu ouriço, alheado da realidade, defendido pelos espinhos da indiferença; e por pudor não exprimia emoções, rejeitava o carinho, reagia à bruta a débeis manifestações de afecto.
"É um bruto! Não conhece ninguém!" — comentava mulher de preto igual a todas as outras, cara quase escondida por lenço, mesmos pés descalços, igual cântaro à cabeça. E eu, olhos sempre baixos, refugiava-me no meu ouriço, alheado da realidade, defendido pelos espinhos da indiferença; e por pudor não exprimia emoções, rejeitava o carinho, reagia à bruta a débeis manifestações de afecto.
Tenho bem vivas as recordações da infância; mas nelas não há beijos, nem abraços, nem quaisquer carícias dos meus avós, dos meus tios e tias. Nem dos meus pais. Nunca disse aos meus avós que gostava deles. Como se tal estivesse implícito por pertencermos à mesma família. Se é que gostava. E, todos o repetiam, essas “mariquices” não eram próprias de rapaz.
A meu pai, a sua morte inesperada, debaixo do tractor, roubou-me a oportunidade de lho dizer — embora, nunca duvidei disso, ele o soubesse bem. Disse-o à minha mãe, mas apenas nos Cuidados Intensivos de Santa Maria, quando a sua morte nos parecia, a ambos, iminente e fraquejei em choradeira incontida...
Nunca os visito no cemitério. Mas rara é a noite em que os meus mortos me não visitam durante os sonhos, em que não conversamos — e o meu pai morreu há vinte anos. Raro é o dia em que não recordo momentos partilhados com todos eles. E sempre me dói o que perdemos: creio hoje que todos teriam apreciado gestos de ternura, palavras de afecto, que então evitámos, que então calámos. Porquê?
Preconceitos, suponho. E mais me dói a recordação do que então não fiz, do que não disse, do que não tive, quando o Afonso, após duas semanas de ausência, se me lança ao pescoço e com a espontaneidade dos seus sete anos me diz: "Avô, tive saudades tuas!" E o Miguel, cinco anos, me abraça e, diz, vai dar-me “Sete beijinhos.” Quando, a brincar, repito ao Tiago, três anos e tal, sentado comigo no banco de jardim onde saboreio o sossego do fim da tarde, o ralho que mais ouvi na infância: “Mas tu nunca te calas?” e o malandro me surpreende: “Não, avôzinho!” E vendo-me derretido com o diminutivo toda a tarde me trata por avôzinho! E hoje, o João, a caminho dos dois anos, com quem não estou há quase duas semanas, ao ver-me aparecer no FaceTime prontamente resplandece em sorriso e me cumprimenta: "avô!".
Porque é que terei perdido tudo isto na minha infância?
FOTO: o meu pai, orgulhoso do atomizador Fontan que comprara recentemente, o meu tio Zé, o meu primo Fernando, e o meu irmão Afonso montado na nossa motorizada Mondial. Por volta de 1970. Não apareço porque fui o fotógrafo.