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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Um amor inventado (4)

Amanhã (...) dirá das boas ao mau amigo que o atraiçoou, encher-lhe-á os ouvidos: se pensa que a Berta gosta dele é um grande parvo, está na cara que dorme com o primeiro que lhe entrar no quarto; ofenderá sentimentos e moça perguntando repetidamente quanto é que lhe pagou... O João seguirá mais adiante ou
mais atrás, desinteressado da sua companhia, que parece querer evitar --- como gato que entornou o leite,
na opinião do Jorge, porque não está para aturar as provocações do ex-amigo, pensará amiúde o João e, para fugir às suas conversas, pedalará furioso, cheio de força como se tivesse dormido regalado toda a noite, embora, como sabemos, apenas tenha caído no sono por breves instantes, após cada uma das vezes em que o sobrado rangeu. Vai enlevado no seu mutismo, a cabeça perturbada por ideias e sentimentos contraditórios --- talvez goste da Berta, e o aperto que sente na garganta seja a saudade a magoá-lo: apesar de só se ter afastado dela duas escassas horas, já os separam montes de pedra e montanhas de preconceitos; mais do que a estrada que se abre à sua frente --- rectas, curvas, subidas penosas, descidas em que folgam as pernas --- o que lhe enche os olhos é sempre o rosto da rapariga, os loiros cabelos soltos, os dentes fortes e sãos, a pele branca, as sardas, até nas mamas --- ah, as mamas! Maiores do que pareciam com ela vestida, mas como se lhe ajustavam às mãos, aveludadas e rijas! e os mamilos... Melhor pensar noutra coisa, pedala numa bicicleta e se se entusiasma lá está o selim para o reprimir dolorosamente; por isso, faz subir o olhar, passa pela boca ardente que parece querer engolir inteiro o seu ser, e afoga-se nos olhos, fundos como poço verde dos limos com que as rãs o atapetaram. Olhos que se despediram ‘‘tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida’‘ estavam os rapazes prestes a abalar. Ignorou o Jorge (...), que parecia esperar justificação atabalhoada capaz de lhe salvar o orgulho. Foi direita ao João, já montado na bicicleta, agarrou-lhe o braço nu e suplicou: --- Promete que não te esqueces de mim.

Ao lado, o Jorge, despudoradamente, ofendia a moça e ridicularizava o João: --- Isto é só amor! E para se apaixonar, basta entrar-lhe no quarto, que a Berta deixa sempre a porta aberta! Tás aqui tás casado coa tipa! ‘Bora, que o fotógrafo já está à nossa espera, na estrada de Coimbra!

Envergonhado, apenas conseguiu responder que jamais a esqueceria. Então, sem timidez nem discrição, a Berta puxou-lhe a cabeça e beijou-o na boca, profundamente, demoradamente, como se procurasse aprisionar-lhe a alma, ou então apenas impregná-la com lembrança que o acompanhasse na viagem de regresso à aldeia natal e não mais lhe permitisse olvidar a criadita da Pensão Estrela. Partiu, deixando atrás de si palavras de circunstância que se misturavam com as lágrimas que jorravam do poço fundo que eram os olhos da Berta fundidos num só, tão perto de si e tão profundamente o olhava, lágrimas que rolavam pelo avental, tantas, tão abundantes, que algumas tombavam na terra batida do caminho, desaparecendo no pó como as palavras na aragem matinal.

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