Foi a época em que renasceu o novo-riquismo, animado pelo volfrâmio dos fundos comunitários. Jipes. Viagens a lugares exóticos. Piscinas...
Alma camponesa a minha. Sempre a duvidar de riquezas fáceis. Avessa a exibicionismos, incomodada com sinais exteriores de riqueza. Sempre do contra, sempre contra a corrente. Indiferente a conselhos sensatos:
-- Tens área, manda lixar a horta, faz mas é piscina! Fica-te mais barato comprares as couves e, já viste, uma piscina! Logo pela manhã um mergulho...
Eu objectava: piscina quer limpeza, manutenção... É trabalhosa, cara... Além do mais, não gosto assim tanto de água. E tinha a piscina municipal a dois ou três minutos de carro... Depois, nenhuma couve comprada tem o gosto das minhas, plantadas com as minhas mãos, regadas com o suor do meu rosto -- que, embora abundante, era insuficiente para a sede delas.
Pensei então fazer um poço. Recomendaram-me um vedor, ferroviário imponente, pela altura, pela largura:
-- Nunca falha! Em vez do forcado de oliveira, usa uma fita de aço. Acerta sempre! E até te cava o poço!
Vem o homenzarrão, percorre o quintal, braços estendidos a segurar a fita de aço torcida, que lhe chicoteia violentamente a enorme pança ao passar em certos sítios:
-- Tem aqui água que não a gasta!
-- Funda?
-- A três metros.
Eu estava impressionado. E via-me já a regar copiosamente os mimos da Primavera, a fazer horta até no Verão...
Decidi-me: -- Como é que se faz um poço?
-- Compre as manilhas, basta noventa de diâmetro, que eu abro-o. Noventa centímetros é o suficiente para eu me mexer lá dentro.
Fiquei preocupado. O homem era gordo, era velho -- e se me morria a cavar o poço?
-- Faço seguro por quantos dias?
-- Para mim, não é preciso, tenho Caixa da CP. Mande lá vir as manilhas e depois diga alguma coisa.
-- E o preço?
-- Depois combinamos. O que é preciso é que ninguém fique mal.
Comprei as manilhas. Com uns dois metros de diâmetro, por via das dúvidas -- não queria o homem entalado lá em baixo. E mandei-lhe recados. Semana após semana.
Cresciam-me orelhas de burro, longas, espetadas, ao ver, dia após dia, o meu quintal transmudado em estaleiro de obras, as manilhas a ocuparem quase toda a horta... Como me veria livre delas?
Sem saber o que mais fazer, fui procurar o ferroviário-vedor a casa. Não estava. A neta, mulher feita, quis saber o que lá me levava. Desabafei, contando a história -- e levei descompostura severa: se achava bem pôr homem daquela idade, doente do coração, a cavar poço; se não tinha vergonha... Tentei ripostar: ele é que se oferecera, nada me dissera do coração, demais a mais não trabalharia de graça, constara-me até que ele costumava abrir poços depois de despegar da CP...
Pior. A culpa era de malandros como eu, que o desencaminhavam, roubando-o ao descanso, afastando-o da família, dos netos. Abalei deselegantemente, de orelhas caídas, para não ouvir mais reprimendas. A moça tinha razão, quem me mandara dar ouvidos a velho gabarola?
O poço? Pois não sabendo de mais ninguém que o abrisse, deitei eu mãos à obra. Com as minhas mãozinhas delicadas de professor. Afinal, era só cavar, cavar... E retirar a terra, coisa que um homem não pode fazer sozinho. Valeu-me a ajuda de familiares e amigos, sempre prontos a dar uma mão, as duas neste caso, em cada uma das minhas ideias malucas.
Tinha os meus trinta e seis anos, muita força de vontade e alguma força física, eles eram rijos e tenazes, por todos lá afundámos o poço até aos sete metros.
Água? Um veiozinho por nascente, que secava em Maio... A convencer-me de que o vedor acertara em cheio: eu não conseguia gastar a água que havia por debaixo do solo!
FOTOS:
1. As manilhas no quintal.
2. A escavar o poço. Nota-se, por detrás de mim, alguma humidade nas manilhas -- a prometida água, tão abundante que a não gastaria.
3. Petisco para os trabalhadores.