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domingo, 2 de março de 2014

Leituras deste Inverno -- Ana Karenine

Todos conhecem a frase de abertura, mas quantos terão prosseguido para além dela, até à última das 735 pp. (introdução incluída) de letra miudinha? Ana Karenine não é obra a devorar apressadamente, numa ânsia de saber como termina, o que, aliás, nem é difícil de prever. Pelo contrário, adapta-se a leitura lenta, por prazer, saboreada capítulo a capítulo, frase a frase. Sublinho:

  • Com personagens a propiciarem caricatura, Tolstoi evita o caminho da facilidade, e não as expõe demasiado ao ridículo. Que diferença, por exemplo, do nosso Eça, que escreve sobre o mesmo período histórico e idêntico meio social. Recordo que em Os Maias, tirando a Maria Eduarda e a mãe, nenhuma das numerosas mulheres é bonita, interessante ou inteligente; nem a Gouvarinho é, sequer, sexy... Quanto aos homens, exceptuando Afonso, também nenhum se aproveita. Os ambientes são quase sempre rascas, conformes à tese de que Portugal é uma choldra e, consequentemente, os portugueses e portuguesas são criaturas socialmente inúteis, fúteis, feias, ignorantes, mesquinhas, e de mau gosto. Lá fora, na Inglaterra que sofre com a revolução industrial, na Paris que esmaga no sangue a Commune é que é bom.
  • A fina análise psicológica das personagens, das suas contradições. Nada inferior a Dostoievski, frequentemente apontado como rival. Não apenas de Ana e do amante, o conde Vronsky, mas também do marido de Ana, de Kitty, do extraordinário Levine, talvez o verdadeiro protagonista, até de personagens secundárias como Sérgio.
  • A economia da narrativa, persistente em obra tão longa. Nela não há nada que eu cortasse. Os eventos e as falas ocorrem com naturalidade, sem truques fáceis, nem soluções do tipo Deus Ex Machina.
  • A reflexão sobre as questões pessoais, sociais e nacionais, registando direito e avesso, embora frequentemente seguindo o ponto de vista angustiado de Levine.
  • A descrição minuciosa do labor agrícola, só possível em quem muito nele transpirou.
  • A descrição fascinante do trabalho dos cães de parar na sempre difícil caça às narcejas nos pântanos.
  • A tremenda, terrível, reflexão sobre a condição humana a que procede Levine após a morte do irmão e que quase o leva ao suicídio, apesar da felicidade em que vive com o casamento e a paternidade. E a descoberta que faz, embora, infelizmente, eu a não partilhe. Como seria bom ter a fé que Levine encontra! 
Escrever, e parafraseio Roland Barthes, é resumir o porquê no Mundo num como escrever.  Fê-lo Tolstoi em Ana Karenine, fê-lo nas suas outras obras, da juventude à velhice. É esse o meu desiderato, apesar de me faltar o seu talento e a sua capacidade de trabalho. Conseguirei realizá-lo? Duvido muito. Mas só assim -- reflectindo sobre o porquê do Mundo e a condição humana, num trabalho formal doloroso, aplainando como carpinteiro cada frase, escolhendo cada palavra -- me interessa escrever. Mesmo que, fazendo-o, venha a ser o meu único leitor. 

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