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terça-feira, 5 de agosto de 2014

Um empresário

Se eu tivesse juízo, ou ambição, escrevia coisinhas lindinhas, ou então deprimentes, pois me parece que para ambas não escasseia público e procura. Como me falta o sentido prático e por ambição literária apenas tenho a de escrever o que quero, como quero, desperdiço esforço e tempo com textos como o que se segue, extraído de um conto já com uns anitos. E depois, de cada vez que se fala noite e dia do último escândalo financeiro, se pergunta ingenuamente como é que se chegou a este ponto... bom, lembro-me: já escrevi sobre isso.  Como há dias aqui coloquei excerto de um conto premiado que fala de bancos e acções, hoje, para desenjoar do BES, segue um centrado no têxtil. Afinal, a causa  de sempre para a nossa decadência: somos país de chico-espertos.
"— O Velho come aquelas gajas todas. Nem imaginas. E mais as secretárias dos clientes, na Alemanha. Vai lá todos os meses, sempre carregado de boas prendas para elas. Por isso, faz bons negócios, e diverte-se à grande, o cabrão.
Apesar de o negócio do têxtil pressagiar já crise, corre a rodos o dinheiro, não rareiam ainda os fundos provindos da CEE, uns para formação profissional, outros para modernização da maquinaria, actualização tecnológica, construção de uma ETAR, incentivos e apoio à exportação… Não importa o pretexto. Os efluentes continuam a seguir direitinhos e fedorentos para o rio Vizela. Os operários sabem mais do que precisam para trabalhar, se querem estudar matriculem-se no liceu à noite, e fazem falta junto das máquinas, nem pensar em os dispensar umas horas que seja para os cursos de formação profissional; as verbas recebidas para pagar a formadores e a formandos embolsa-as o patrão (então não paga o salário a engenheiros e a operários, pontualmente a 30 de cada mês?) As máquinas actuais servem muito bem, e das exportações trata ele próprio, como faz com os incentivos à exportação, gastos em prendas e noites de hotel com as secretárias alemãs. E o sobrante é investido meticulosamente em carros topo de gama, jipe para a mulher, almoços e jantares de luxo, iate na marina de Vila do Conde, mulheres e despesas de sedução — despesas de representação, como as inscreve o seu contabilista. 
Veio há pouco ao Norte o primeiro-ministro Cavaco Silva avisar que é tempo de acabar com as despesas sumptuárias no vale do Ave. Pois sim. Como sempre, os seus discursos sibilinos servirão para mostrar à posteridade, quando se recandidatar à Presidência da República, que lançou oportunamente os alertas e deixou continuar a roubalheira — palavras, leva-as o vento. Chegará o dia em que os têxteis serão liberalizados, a fábrica declarará falência, pouco depois o Velho abrirá outra com novos subsídios, outros empréstimos bancários, e a vida à tripa-forra prosseguirá até que a Europa se canse de nos financiar. Então o industrial viverá dos proventos acumulados e bem acautelados, uns em nome da mulher, que oportunamente entrará com processo de divórcio embora continuem a coabitar (pobrezinhos, não têm outra casa onde viver!), o palacete posto a salvo de penhoras judiciais, em nome da filha, se lhe leiloarem bens em hasta pública serão seguramente os carros velhos, pois os amigos nas finanças continuarão a valer-lhe como ele antes lhes valeu, também o apartamento em Portimão será oportunamente resguardado dos credores, esse fica em nome do filho, que agora descobre que a internet também serve para o engate, enquanto lentamente, faixa a faixa, o CD-ROM vai gravando as músicas pirateadas que à noite venderá aos amigos, modesta ajuda para farra e passa…"

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