Colho a maçã Starking, este ano abundante, lustrosa, sempre atento à escuridão que se adensa. Vem aí temporal. Mas o vício do campo apouca os receios da molha, até o maior, o de ser apanhado por trovoada em cima do tractor.
Chega até mim o dobre a finados do sino da aldeia. Coitado, outro velho que se foi, penso, de cada vez que venho à aldeia morre alguém.
Os primeiros pingos de chuva, grossos, esparsos, fazem-me correr para o tractor, acelerar para casa. Mesmo a tempo. Tocada a vento forte, a chuva cai bruta sobre a povoação, e eu já resguardado, começo novas tarefas, desta feira a preparar adega e utensílios para a vindima.
Telefona-me um amigo distante a dar-me triste nova: ao que leu no jornal, morreu nos Montes um jovem, 23 anos, em acidente de tractor. Assim morreu o meu pai, assim morreu um vizinho, assim têm morrido tantos outros, por cá e nos arredores. Sempre me choca a morte no trabalho, mais ainda quando se trata de um jovem promissor, cheio de sonhos de agricultura biológica, produção de ervas aromáticas, a amanhar encostas soalheiras que outrora foram férteis e ficaram perdidas até que ele, e outros como ele, as começaram a desbravar, lavrando-as, plantando-as, tornado-as num regalo para os olhos.
Mas o bucolismo, a pacatez campestre são ilusão. A beleza de uma terra bem amanhada, de uma horta viçosa, de um pomar a "zombrar" com frutos reluzentes esconde, não raro, perigos corridos, sustos apanhados. E nós, mesmo sabendo-o bem, continuamos a arriscar, para desfazer um tufo de ervas sobrevivente que desfeia a lavoira, para destruir um silvado na estrema, como no acidente que vitimou o meu pai, ou reparar um velho caminho, como me constou que sucedeu neste acidente.
Não conhecia o infeliz moço. Sou quase estranho e estrangeiro na minha própria terra, de onde saí aos catorze anos. Mas lamento sinceramente que os seus sonhos agrícolas lhe tenham sido funestos. À sua família, a todos os que o amavam, as minhas sentidas condolências.
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