Tinha sido destacado com alguns camaradas, quase todos milicianos, para dar uma recruta em Santa Margarida, campo militar em lugar ermo, com longa avenida entre numerosos quartéis, cada qual com a sua autonomia. Logo numa das primeiras noites, estava eu de sargento de dia, e chamam-me à caserna dos recrutas. Um dos “prontos”, soldados veteranos, de alcunha o Portimão, bêbedo, G3 na mão, ameaçava os moços, a extorquir-lhes dinheiro, bebidas, enchidos, chocolates. Cheguei-me às boas, a tentar levá-lo dali para fora. Recusou sair: queria beber, e, dizia, os recrutas tinham bagaço escondido nos armários.
-- Venha então daí, e peguei-lhe amigavelmente no braço, vamos ao bar, que lhe pago um copo.
Intempestivamente, libertou-se com um safanão, apontou-me a G3 à cara, a dois passos de distância, meteu bala na câmara, grunhiu: -- Sei usar esta merda!
Nem me apercebi do perigo que corria. Inútil a Walter de serviço, no coldre fechado e sem balas. Pistola e braçadeira eram meros adereços da função.
Sem pensar, avancei para ele, desviei o cano da arma, -- Oiça lá, meu sacana. É assim que me agradece por o safar das porradas quando está desenfiado do serviço, como aconteceu ainda no mês passado, você a dormir na cama e o posto de sentinela vazio?
-- Isso não é agora para aqui chamado, contrapôs, aparentemente desorientado.
-- Aí não é? Eu faço-lhe bem e você aponta-me essa merda? É assim que me agradece?
Por entre palavrões e ameaças afastou-se e refugiou-se no quarto.
Queixa apresentada na manhã seguinte, o comandante do destacamento, um major que havia chefiado a descolonização de São Tomé e Príncipe, chamou-o ao seu gabinete na minha presença. E o Portimão, que tinha cursado com distinção a escola de malandragem, desfez-se em falinhas mansas, em tom humilde, desculpou-se, tinha sido do vinho, não tornou a beber...
O major, que acreditava na bondade humana, no arrependimento e na capacidade de regeneração do ser humano, despachou-o com simples raspanete.
E o Portimão continuou connosco.
Nessa semana, os recrutas, em plenário dinamizado pelos SUV (Soldados Unidos Vencerão!), aprovaram várias medidas revolucionárias: não rastejar na pista de técnica de combate porque o chão estava lamacento, e não fazer serviços.
O bom do major, levando-me a passear abraçado pela parada sob olhares escarninhos dos recrutas, explicava-me: havia que respeitar a decisão democrática do plenário, mas era preciso garantir a segurança do quartel. Afinal, tínhamos connosco mais de duzentas armas. Sem os recrutas, teria de ser assegurada pelo oficial de dia, por mim, a quem calhava naquele fim-de-semana o serviço de sargento de dia, pelo Portimão como armeiro. O suficiente. Afinal a unidade estava dentro do campo militar, com segurança à porta de armas. Prosseguia:
-- Olhe, o Portimão pediu-me uma pistola...
Atónito, interrompi o passeio, olhei-o nos olhos: -- Meu major, ele é o armeiro, tem o quarto atravancado com G3! Até em cima dos beliches!
E o comandante, pacientemente: -- Eu sei. Mas diz ele que se lhe aparecer alguém de noite precisa de uma arma pequena. Por isso, dê-lhe a sua.
O major insistiu. E eu entreguei a pistola ao Portimão, já com balas no carregador, conseguidas com grande dificuldade depois do susto que ele me tinha pregado.
Partem todos de fim-de-semana. Na unidade deserta, desabafo com o aspirante que ficou de oficial de dia: -- Já viste a minha figura de palhaço, sargento de dia desarmado? E tive de dar a minha arma ao Portimão, que já tem duzentas...
Tranquilizou-me. Com o quartel deserto, não haveria novidades. -- Olha, a minha mulher e o meu cunhado vêm ter comigo e dormem cá, não faltam quartos livres. Vai-te embora para casa.
Sair do quartel, dormir em casa, com a minha mulher? Irrecusável. Portanto, desenfiei-me. Mas, para evitar que dessem por isso, no domingo regressei antes do restante pessoal. E o pobre aspirante contou-me a toirada da noite de sábado: o Portimão, outra vez bêbedo, e não tendo com quem brigar na nossa unidade, foi armar desacatos para o bar dos sargentos de um quartel vizinho, Engenharia. Chamado o nosso oficial de dia a repor a ordem, ameaçou matá-lo com a minha pistola... A custo conseguiu levá-lo de volta, teve várias vezes a arma apontada à cara, bala na câmara, sem se atrever a deixá-lo sozinho antes que a bebedeira passasse, temeroso pela mulher e cunhado, escondidos na ala dos oficiais...
Desta feita, o Portimão foi recambiado para a nossa unidade de origem, em Torres Novas. Dias depois, voltou a embebedar-se e infernizou o quartel, disparando rajada sobre rajada sobre tudo o que mexia. Os camaradas, resguardados nas esquinas, gritavam-lhe apelos à calma. Em vão.. Havia de matar o comandante, o segundo comandante, o sargento da companhia...
Por volta da meia-noite saiu do quartel. Desarmou pobre polícia, que em pânico se atirou às águas imundas e gélidas do Almonda e a nado fugiu para a outra margem. Depois, não encontrando a quem perseguir na vila deserta, reentrou na unidade sem que o frio da noite lhe tivesse arrefecido a fúria assassina.
Da capital chegaram ordens para o abater. Ninguém o queria fazer. Mas municiados com balas reais, os soldados respondiam ao fogo do camarada, evitando atirar à figura. Até que, pela madrugada, o Portimão, ao atravessar a parada para nova surtida na vila, caiu atingido por estilhaços de rajada, vários ferimentos ligeiros, um testículo a menos, Presídio Militar como destino.
FOTO: em Santa Margarida, com alguns dos camaradas destacados para dar a recruta. Estou à direita, ajoelhado, de óculos.