Quando começámos a namorar, a 3 de Fevereiro de 1973, o
mundo era outro. Mas mudava depressa. Os americanos, com todo o seu poderio,
tinham sofrido derrota humilhante no Vietname. Cá, a ditadura herdada por
Marcelo Caetano agonizava. O "orgulhosamente sós" salazarista era por
todo o lado interpretado como "vergonhosamente sós", tão mal
acompanhado que Portugal estava: só Israel, sionista, e a África do Sul do
aparteid nos apoiavam nas votações das Nações Unidas. A guerra colonial estava
no auge, e nem a censura conseguia evitar que os jornais antecipassem a derrota
iminente: lembro-me de título de primeira página do Diário de Notícias
reproduzindo declarações do ministro da defesa, general Costa Gomes, proferidas em visita a Moçambique: "A
situação é grave, mas não desesperada".
Era tão desesperada que o general a não negava. E, se
dúvidas houvesse, bastava ver as longas listas de mortos, sobretudo furriéis e
alferes milicianos, que o mesmo jornal publicava diariamente e eu recortava
para afixar no bar do Instituto Comercial onde estudava. Pouco. Já então a
actividade revolucionária me absorvia de tal forma que o meu tempo era gasto a
escrever e distribuir panfletos, de dia nas escolas e universidades, de noite
nos "meus" bairros populares (Madragoa e Alvalade), a fazer
"selos" (como chamávamos às tiras autocolantes com slogans
revolucionários impressos com carimbo) e a colá-los por todo o lado, nas
paragens de autocarro, nas vitrinas dos bancos, nas árvores de jardim, a pintar paredes, reuniões clandestinas, actividades de recrutamento, manifestações diárias...
Perdido de sono, de que sempre sofri e sofro, incapaz por natureza de
noitadas, faltava frequentemente às primeiras aulas. Sempre alerta
para não ser seguido ou preso pela PIDE, ia irregularmente às outras, sentava-me junto à
janela, pronto a saltar e fugir se me tentassem prender lá. Nas aulas, escrevia
constantemente, mas não eram apontamentos de aluno atento, antes panfletos
estereotipados, para imprimir e distribuir mais tarde.
A minha vida era então a Revolução. Ou quase. Porque havia
também a paixão inconfessada pela colega da foto, tirada antes de namorarmos.
Sem coragem de me declarar, a medo de a perder.
Amigos. Colegas de estudo, inseparáveis nas aulas, nos
intervalos, uma noite por outra noite no Big Ben, café de estudantes próximo da
Faculdade de Ciências, onde o fumo era de cortar à faca e eu lhe tentava
explicar os mistérios da matemática, a resolução de equações de segundo grau, o
enigma dos números imaginários,
-- Se são imaginários não existem!
-- Mas repara, qual é o número que elevado ao quadrado dá
-4?
-- Menos dois!
-- Mas não pode ser, bem sabes que o quadrado de um número
negativo é sempre um número positivo!
E ela protestava contra a tirania dos axiomas, a irracionalidade dos números irracionais, a incompreensibilidade dos números
imaginários! Coisa mais absurda, a Matemática! Não
se podia ficar apenas pelos números naturais, afinal aqueles que importam a
futura contabilista?
Pois na noite de 3 de Fevereiro, dia do seu aniversário,
começámos a namorar. E, quarenta e três anos depois, ainda não parámos.
FOTOS: (1) Junto a Económicas, em cuja cantina almoçávamos frequentemente; (2) a estudar, salvo erro na estufa fria, aí por 1972. Somos o par da direita.
1 comentário:
Como se todo o amor fosse
um amor somente...
Ai, como é diferente!
Ai, como é diferente!
O amor em Portugal!
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