No conto O Largo, de Manuel da Fonseca, o bêbedo local estraga a história que conta com um mero pormenor -- no Rossio, em Lisboa, atinge o carteirista com um soco e este, ao cair, bate com a cabeça num eucalipto...
Assim é a arte da escrita. Basta um detalhe para arruinar uma bela história, e não há frases, por mais trabalhadas, que a possam salvar. Porque a imaginação não torna aceitável a ignorância, e um disparate, por mais ornamentado que esteja, não deixa de ser um disparate, a não ser que o leitor se aperceba de que o escritor está a gozar com ele.
Exemplifico: no seu Voyage dans la Lune, do séc. XVII, Cyrano de Bergerac põe o seu narrador a dizer que, como toda a gente sabe, a Lua atrai as gorduras... Mark Twain, num conto, faz uma descrição em que um esófago contempla meditativamente o pôr-do-sol...
Bem diferente é a frase que li no Facebook, dias atrás, atribuída a Clarice Lispector, segundo a qual a vida tinha começado com duas moléculas. Falta-lhe a piada dos exemplos de Cyrano e Twain, e é disparate tão gritante que me surpreendi por a frase não ter sido prontamente dissecada e desmentida, fosse à luz do conhecimento actual, fosse do que estava acessível no tempo da autora.
Leitores, abram esses olhos e não prescindam do espírito crítico, não se deixem enrolar por palavreados, perguntem sempre, como o Calisto Elói, de Camilo, o que é que tal significa em vernáculo; escritores, se fazem questão de afirmar assertivamente (desculpem o pleonasmo) o que não sabem, e julgam ter tanta certeza no cag... que não erram o chão, dispensando-se de modalizar, ao menos coloquem as asserções na boca das vossas personagens. porque, podem ter a certeza, basta um pormenorzinho para arruinar o trabalho do dia, de semanas ou meses até.