1846. No Minho, em plena revolução da Maria da Fonte -- e na cama com ela.
"Não lhe tinha mentido, não era maçon, pedreiro-livre como ela dizia, embora em tempos tivesse frequentado algumas das lojas que brotavam pela capital como as nascentes no Inverno. Não chegou a ser iniciado, desagradado com o ambiente rasca, nos antípodas da elevação espiritual que sempre associara à Grande Fraternidade, enojado com as intrigas, as disputas de cargos e lugares políticos, o compadrio, a alegre aceitação da corrupção por parte daqueles mangas-de-alpaca que não viam contradição entre os ideais maçónicos de justiça e o suborno que quotidianamente recebiam, inclusive de ambas as partes, nas litigâncias. Passada a novidade, começou a aborrecer os rituais, vendo-os como missa profana, o padre substituído pelo mestre, o bispo pelo grão-mestre, o Grande Arquitecto em vez de Deus, estátuas de santos devotos, imagens beatas, relíquias sagradas trocadas por objectos de uma profissão que não era a sua — martelos, compassos —, aventais ricamente decorados em vez de sotainas, mas sempre, tal como no seio do clero, a intriga, a luta pelo poder, a convicção de que aqueles que estão de fora são bestas ignorantes que importa manipular mas não redimir. E, sem romper por completo, começou a espaçar a participação, incapaz de aceitar como chefes espirituais homens de vícios e de baixezas como os padres, como eles a pregar uma coisa e a fazer o seu contrário.
A perda da fé, primeiro no Deus bíblico, que apesar dos castigos com que flagelou a humanidade não conseguiu impedir que o Mal infectasse a Terra, depois no Seu Filho, o Salvador vindo ao Mundo para redimir o Homem e dar esperança ao Pobre, e o Homem, dezanove séculos depois laborava nos mesmos erros e mistificações e o Pobre cada vez estava mais pobre, por fim nos belos ideais maçónicos, convenceu-o paulatinamente de que teria de ser ele mesmo, Adolfo, a assumir a responsabilidade de libertar a humanidade das trevas da ignorância em que a queriam manter todos os outros, fossem eles cristãos, maçons, miguelistas, cartistas, setembristas até. Como se cada loja maçónica, cada partido, mais não fosse do que mera carruagem tomada para conduzir à Câmara dos Deputados, à governação. Sem confiar nos outros e nas organizações que criavam e logo atafulhavam de ritos embrutecedores, de rituais de submissão para obviar disputas de poleiro, julgava-se o homem providencial, aquele que chegada a ocasião não recuará e não hesitará em adoptar os meios necessários, em ser o Danton, o Robespierre do nosso tempo! Aquele que, como leu num panfleto francês, não receia recorrer à faca, à bomba, ao veneno, para despertar o povo para a revolução. Ni Dieu Ni Maître! — proclamava o opúsculo. Assim pensava, assim se sentia, livre, disponível para a revolução, à espera de oportunidade, que julgou surgir quando a sorte o bafejou com a reportagem da sublevação do Minho."
JCC, inédito
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