Aos oitenta anos, a minha mãe perdeu a fé.
Nunca teve muita. Na minha infância, quando o sino chamava imperioso para a missa dominical, desabafava:
— Ora, tenho mais que fazer, Deus há-de perdoar.
Mas obrigava os filhos.
Logo de madrugada, acendia o lume, ia à fonte, preparava-nos o 'almoço', café de cevada com leite em pó aguado e pão com manteiga ou marmelada, aquecia água para os banhos no alguidar, vestia-nos a custo, sem poupar safanões, ralhos, meiguices aldeãs:
— Vê se páras quieto para te albardar!
E eu a choramingar, antecipando a chacota dos outros garotos:
— Não ponho o laço!!
— Pões sim senhor, quem manda sou eu!
Miúdo enraivecido descarrega nos mais pequenos.
— Ó mãe, ele bateu-me!
— Mentirosa, toquei-te sem querer!
Saia bofetada, eu berrava e protestava inocência, a minha mãe, já arrependida da justiça sumária, dava outra na minha irmã para se não ficar a rir, ela gritava como se a estivessem a matar,
— Cala-te!
Nova bofetada.
— Agora choras com razão!
Até que, finalmente, me conseguia pôr à porta: — Já para a missa e portar bem!
Lá ia eu cabisbaixo na roupa domingueira, calções e suspensórios a provocar a chacota da miudagem, laço de elástico que me faria brigar rebolando no pó do adro quando algum malandro o puxasse para me bater violentamente na garganta, emblema do Sporting na lapela, que os matulões iriam querer esborrachar debaixo de uma pedra e só com choro poupariam — por lhes dizer que era do meu pai.
À chegada do Sr. Prior, como chamávamos ao padre, as contendas acabavam instantaneamente, ajoelhávamos no cimento grosseiro da modesta capela da aldeia, à frente raros beatos, depois as mulheres, por último os garotos, sempre na macacada, a distraírem-me na minha devoção, atento às palavras do Sr. Prior a falar-nos do diabo que chegava a entrar na igreja para desencaminhar as almas — tal qual como aqueles diabos, que me beliscavam, obrigando-me a sofrer em silêncio, ou me sussurravam disparates ao ouvido para que risse, e o padre, mesmo em frente, empalidecesse e intimamente jurasse que lhas pagaria se me apanhasse na catequese — ou fizesse queixa à professora, de bendita régua justiceira...
Em casa, a minha mãe, em pecado mortal por faltar ao sacrifício da Santa Missa, por isso condenada aos tormentos do Inferno, assim garantia o padre, momentaneamente aliviada do inferno que era aturar-nos, acudia ao gado, que reclamava no pátio, não os coelhos, silenciosos, mas as galinhas, sempre com fome, os porcos lambões, a burra, impaciente por não sair ao domingo do curral e se espojar no pó da estrada, depois passava a roupa a ferro soprando as brasas para as espevitar enquanto sobre lume de vides e braças de pinheiro cozia o jantar, que o fogareiro a petróleo, fedorento, o bico sempre a entupir, estava reservado para alguma emergência nocturna, como fazer uma água com açúcar, remédio infalível, que outro não havia, para indisposições, indigestões, mal estar geral.
Passaram muitos anos. Enviuvou, passou a ir à missa, que já não é aos domingos por falta de vocações para o sacerdócio, mas de semana e ao anoitecer. Para minha satisfação egoísta, sempre a querer que tivesse ocupações, caminhadas, ginástica, pintura, renda, pouco me importava, contanto que não estivesse dependente de mim...
Mas faltava frequentemente. Quando vizinha a chamava,
— Maria, vens á missa?
— Hoje não. Fico a fazer companhia ao meu Zé.
Ou porque estava muito frio, ou lhe doíam as costas, ou "hoje não me apetece"...
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Rija, arribou. Fraquinha, com complicações pulmonares contraídas em Santa Maria, de bactéria resistente aos antibióticos, a voz sussurrante, quase inaudível, de traqueostomia que correu mal e lesionou as cordas vocais. Incapaz de andar, até de comer. Com alta hospitalar, levei-a para o melhor lar que encontrei.
Voltou a andar, com dificuldade. Fazia a ginástica que podia. Recomeçou a fazer renda. As dores não a largavam, perdeu a vista num olho e o glaucoma ameaçava já o outro.
Na falta de novidades, repetia-lhe as já contadas nas visitas anteriores. Para a ocupar e preencher silêncios, passeávamos a pé, pelos corredores do Lar se chovia, fora se o tempo o permitia.
Apenas as visitas a animavam. Eu, a minha mulher, que a levava quinzenalmente à esteticista, as netas, o bisneto mais velho:
— Hoje veio cá o Afonso...
E eu a pensar que estava a delirar.
— Mãe, ele à tarde está na escola!
— Veio! Veio com a mãe e o irmão, antes de tu chegares! O irmão, como é que se chama, não me lembro? já anda! Passou o tempo a correr por aí. E com a voz embargada pela emoção: — O Afonso, cada olho! A ver tudo, a querer saber tudo! Como tu eras, em pequeno!
Mas as semanas têm sete dias, os dias vinte e quatro horas.
— Os dias são tão compridos!
— Mãe, tem de se entreter!
— Com quê?
— Tem os trabalhos manuais...
Não lhes via interesse, não apreciava as conversas das companheiras, mais ou menos senis, e sentada naquelas cadeiras doíam-lhe as costas.
— Vens sozinho?
E eu, irritado, a sentir que me recriminava: — Mãe, que quer? As suas netas estão a trabalhar, hão-de vir no fim-de-semana! Domingo venho buscá-la para almoçar connosco! Tem se entreter, tem de se integrar nas actividades...
— Não me interessam!
— Mãe, hoje houve missa. Gostou?
— Fui-me embora, não ligo nada a isso!
Piorou. Deixou de poder sair da sala de convívio quando a freira começava a cerimónia.
— Mãe, hoje assistiu à missa?
— Ora, fingi que estava dormir!
FOTOS: (1) há mais de 40 anos, com a neta mais velha; (2) uma semana antes de morrer, a passear no lar com a outra neta; (3) um lanche no Lar, ao Domingo.
2 comentários:
Boa memória à sua mãe.
Obrigado!
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