Os chavões tornam-se paulatinamente na sabedoria popular. Por
exemplo, ensinava velho professor de liceu: “Camilo mata-os a todos, Júlio
Dinis casa-os a todos”, -- ideia que parece ter-se colado como rótulo a estes
autores.
Acontece que estas generalizações, como as demais, são
ignorantes e falaciosas. O tal professor talvez não tivesse lido mais de Camilo
que Amor de Perdição, em leitura adolescente, daquelas que, não raro, à força
de concentrar a atenção nas personagens principais, perdem a riqueza de
personagens secundárias, como o grande João da Cruz… Pois o seu juízo simplista não sobrevive à leitura de obras
como Onde Está a Felicidade, A Queda dum
Anjo, A Brasileira de Prazins, Coração, Cabeça e Estômago…
Júlio Dinis não é mero autor-casamenteiro -- todos se recordam de personagens suas como João Semana e José
das Dornas (As Pupilas do sr. Reitor), o herbanário e Joãozinho das Perdizes (A
Morgadinha dos Canaviais) ou Tomé da Póvoa e Clemente (Os Fidalgos da Casa
Mourisca). E desenvolveu com maestria temas
perfeitamente actuais como o caciquismo político, a manipulação de massas (A
Morgadinha dos Canaviais), a corrupção das autoridades e a viciação da justiça
(Os Fidalgos da Casa Mourisca) , obra a que pertence o seguinte excerto:
“Julgou elle [Clemente, o regedor], com sympathica ingenuidade, que os superiores o conceituariam tanto melhor, quanto mais exacto e imparcial elle fosse no cumprimento dos seus deveres; com funda e amarga dôr de coração viu pois, que tendo arrostado com as sanhas de alguns fidalgos, cujas illegaes franquias procurára fazer cessar, o administrador, que sabia theorisar muito melhor do que elle sob o thema de emancipação do povo, dos direitos do homem e da igualdade perante a lei, mas que tambem sabia quebrar na pratica as quinas e os angulos agudos ás suas theorias, tomava o partido dos fidalgos, e censurava asperamente em officios o procedimento do regedor.”
É em Camilo e em Júlio Dinis que encontramos o povo
português do séc. XIX , com as suas misérias e grandezas, como realidade social
e não como caricatura, igualzinho ao que temos hoje…
JCC
4 comentários:
Caro comparsa de leitura,
Isso é mais assim como diz no caso de Camilo de que no de Júlio Dinis. Em Júlio Dinis, existem sempre, ou quase sempre, dois temas presentes. A orfandade materna e o casamento. A isto acresce qu o quadro que foi, ao longo das obras, matizando acerca da vida campestre se apresentava invariavelmente como farto de bens e omisso de privações por parte da populaça. Faz, é certo, agora do que recordo, logo no início da Morgadinha, aquando da chegada de Henrique de Souselas, uma alusão a um menino que brincava nu com uma galinha. Salvo erro e se nada devo a esta memória. Mas, exceptuando este e mais um ou outro pormenor, o bucolismo esteve-lhe sempre presente na obra, dado como exemplar elixir para a vida saudável, onde não grassam as vicissitudes (talvez só mesmo os escolhos amorosos dos personagens). Numa palavra, Dinis escrevia muito para as rapariguinhas da Foz, ao estilo de Jane Austen. Não terá sido por acaso que Eça sobre ele disse que "viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve". Mas é verdade que dissertou sobre o caciquismo, sobre a religião e a morte, entre o mais.
Não obstante o que escrevo, não deixo de ser um profundo admirador da curta obra de Dinis e ainda mais admirador desse tsunami literário que dá pelo nome de Camilo.
Cumpts,
João Andrade
Boa noite!Encontro muito mais povo, muito mais autenticidade em Júlio Dinis do que, por exemplo, em Eça -- que muito aprecio. Considerando apenas a Morgadinha:
O recoveiro Cancela;
O cavador, tocador de bombo e a sua mulher, a beata Ermelinda;
Joãozinho das Perdizes, Cosme, Canada, o dono da tasca;
O mestre-escola;
O brasileiro;
Pertunhas;
etc.
Luta de classes, a pretexto da religião? Na Morgadinha.
Denúncia da corrupção política, do compadrio? Na Morgadinha.
etc.
Em Eça, e não o estou a desvalorizar, considerando A Capital, A Ilustre Casa de Ramires, a Cidade e as Serras, quem trabalha? Se bem me lembro, toda a gente vive de rendimentos!
Note que não oponho estes autores. Mas Eça não tinha razão ao acusar Dinis de escrever de leve, ou como diríamos hoje, de fazer escrita light.
Porém. concordo consigo: uma coisa é o que está escrito, outra aquilo que é lido. As rapariguinhas da Foz leriam uma coisa, que está na obra, eu leio outra, que também lá está.
Cumprimentos
JCC
Subscrevo parte do que refere, principalmente quanto à Morgadinha. É um romance que, sinteticamente, alude a todas essas questões que evoca, ainda que o faça discreta e tenuemente.
Quanto a Eça, que também muito aprecio, e que, como sabe, começou por ir para Havana como nosso cônsul, "embrulhado", como dizia, "num decreto", mas que só de tempos a tempos se permitia elaborar e remeter um magro relatório para a Casa Real, nunca poderia escrever sobre esse estigma que se abate sobre o comum mortal chamado trabalho, precisamente uma actividade a que, com sinceridade, não se dedicou muito em vida. Aos livros que refere, junto ainda os Maias e o Primo Bazílio, este último, romance em que o único desgraçado que trabalhava, o eng. Jorge, depressa tratou o autor de o despachar para o interior, retirando-o de cena, e com um par de cornos. Só voltou no fim, para dar corpo e forma ao adultério.
Mas entre Camilo e Dinis, e não ligo agora à qualidade da prosa, quantas vezes Camilo, pois que, apesar de romântico, imprimia num repente, lá pelo meio da história, trechos verdadeiramente realistas, sombrios, por vezes tenebrosos, que, esses sim, mostravam bem o esqueleto do povo de então e da pátria de outrora. Em Dinis, por ventura só a cena do enterro na Morgadinha possa ser (pelo menos, por mim) considerada.
Talvez por isso, e só por isso, nessa comparação entre mestres, alinhe com Eça na caracterização que faz da escrita Dinis. De ter sido leve. Mas uma coisa é certa e disto não abdico. Leio e releio os três sempre com o maior prazer, tabelando-os como os nossos três melhores escritores.
Cumpts.
João Andrade
Júlio Dinis, grande prosador, não é, concordo, da craveira de Camilo ou de Eça. Mas muito poucos dos nossos escritores o são.
O que é eu sustento é que as suas obras não são apenas idealizações e casamentos, mas há nelas profundo conhecimento da realidade rural coeva e uma capacidade rara de a transmitir literariamente. De tal forma que me inspirei no motim contra o enterro no cemitério da filha do Cancela, a pequena Ermelinda, para recriar a revolta da Maria da Fonte em inédito meu. Vou talvez publicar esse excerto aqui.
Um abraço.
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