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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Abafadora

 Neste dia que amanheceu chato, amodorrado, deu-me para vasculhar nos meus ficheiros e encontrei este conto, de 2018, que apareceu numa antologia organizada e publicada por colegas de escrita.

Dada a extensão do conto, vou publicá-lo aqui ao longo da semana, um excerto por dia.
Assim, aí vai o primeiro fragmento de "A Abafadora", avisando, desde já, como se fazia antigamente (e deveria ser escusado) que é obra de ficção, portanto qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
A Abafadora (1/6)
Senhor padre, pecados não me faltam! Se os contasse todos, não saíamos daqui hoje.
A voz por detrás da grade do confessionário, calma, grave, quase pastosa, insiste: têm tempo, nada de pressas quando é a Eternidade que está em causa, também as tardes são longas, ao ponto de o sacerdote as achar intermináveis, depois desta virá outra pecadora, e outra, e mais outra, cada qual mais velhota, até parece que as beatas solitárias inventam pecados e pecadilhos para terem quem as oiça, Perdoai-me, Padre que pequei por pensamentos, palavras e actos, vai-se a ver, os pecados que aterram a velhota serão insignificâncias, coisa de ter rezado distraída uma ave-maria do terço, ou o de ter faltado à missa no domingo passado alegando estar doente, como se ela e Aquele que está lá no alto não soubessem perfeitamente que era só preguiça, falta de vontade de sair de casa naquela manhã de invernia, boa para ficar ao borralho da braseira,
— Tenha cuidado com a braseira, morre muita gente de idade, e até mais nova, por causa dos gases que produzem!
— Sim eu sei, Sr. Padre, já tirei a mantilha da mesa dela para arejar melhor, e não cubro as brasas com papéis de prata, Mesmo assim, mas confesse lá então os seus pecados, e melindra a velhota gracejando que na idade dela as faltas cometidas não serão muitas nem graves, deixando-a duvidosa do valor desta confissão feita a padre modernaço, que parece não acreditar no pecado, não distinguir mortais de venais, talvez nem acredite em Deus nem no Diabo, pensa já, enquanto escolhe os que julga mais importantes, tem é de se ir confessar a Fátima, lá os padres terão outra consideração, dar-lhe-ão penitência mais severa para a absolvição ser merecida, ainda hoje vai pedir à filha que a leve lá tão cedo quanto puder.
Por isso, o padre, a bocejar discretamente, culpa da modorra da igreja silenciosa, espera também desta confessada rol de bagatelas, vá lá, se tiver sorte, um ou outro escândalo sexual, que ainda está em boa idade para neles se envolver.
Então, minha filha?
Por onde hei-de começar, Sr. Padre?
Quando foi a última vez que te confessaste?
Creio que foi antes do meu casamento, já lá vão vinte e três anos. E apressa-se a acrescentar, Não confessei então tudo, que o padre conhecia-me e tive medo que desse com a língua nos dentes. Sabes que estamos obrigados ao segredo da confissão. Sei, Sr. Padre, mas também sei que os padres são homens e alguns homens são linguarudos, mais ainda que as mulheres. E aquele padre saiu pouco depois, e deixando de ser padre já não estava obrigado ao segredo da confissão. Ora se eu lhe tivesse contado certas coisas.... Vamos lá então, apressa-a o confessor, já cansado dos rodeios e pruridos, Começa então pelos pecados graves, se os tinhas, que omitiste na confissão anterior. Ou pelos mais recentes, e confessas depois os outros, se forem relevantes.
Começo então pelo fim, Sr. Padre. Trabalho num lar e de vez em quando abafo velhotes. Sobretudo velhotas. Detém-se um pouco, a saborear a surpresa que pressente por detrás da grade, depois prossegue: Durante a noite, quando estou de turno, vou-me a um daqueles que dá mais trabalho, ou que me aborreceu, ou fez queixa de mim à patroa, e enquanto dorme, abafo-o com a almofada. Vai-se como um passarinho, não sei se já matou pardais ou pombos, aperta-se-lhes o pescoço e o bico, e apagam-se num instante. É um ar que lhes dá, melhor dizendo que lhes falta. Pois assim é com os velhotes. De manhã, dou com eles frios, grito que a dona Guilhermina se foi desta para melhor, a patroa telefona à família, ao médico para passar a certidão de óbito, a sociedade fica livre deste encargo, eu do trabalho, e vingo-me das queixas, cá se fazem, cá se pagam, a patroa não perde, que a vaga é logo ocupada, não faltam velhos em lista de espera, a família fica aliviada daquele peso e despesa, e a velhota deixa de andar por cá a sofrer, vai ao encontro do Criador, que a recompensará ou castigará, como Lhe aprouver...
O padre, agastado, demora a conseguir falar. O que ouviu, no segredo da confissão, é crime, é pecado, Lembra-te, filha, do mandamento da Lei de Deus: Não matarás! Os idosos ao teu cuidado merecem carinho e protecção, só Deus pode decidir da vida e da morte, mas porque fazes tais malvadezas, não receias ser descoberta e castigada pelos homens?

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A minha bicicleta

 – Afilhado, quando fizeres a quarta classe, dou-te uma bicicleta!

A promessa apanhou-me de surpresa, deixou-me sem fala, a rebentar de alegria interior. Uma bicicleta! Minha, não como a de outros garotos, surripiada às escondidas ao pai, ou a irmão mais velho, o que lhes valia depois umas boas tareias. Logo que pude, deixei-o na cavaqueira na adega com o meu pai, e corri a dar a grande notícia à minha mãe. 


-- Dá-te uma bicicleta? Tomaria ele ter uma! Isso são coisas que se dizem aos garotos.

– Dá, ele disse que dava, o meu pai ouviu.

– Então espera por ela.

Esperei. Fiz a quarta classe, o Ciclo preparatório, o Curso Comercial, etc., etc. Sempre sem bicicleta. Que essa há-de dar-ma o meu padrinho, assim prometeu num serão na nossa adega sessenta anos atrás.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Reciclagem


Reciclo tudo o que posso – plásticos, metal, vidro, óleo alimentar, pilhas, lâmpadas, eletrodomésticos avariados. Será bizantinice minha, mas alguma da reciclagem que faço causa-me apreensão. Em primeiro lugar, os papéis.
Talvez numa grande cidade não seja fácil identificar o lixo de cada morador, mas aqui é perfeitamente possível saber o que como, o que bebo, que medicamentos tomo (logo, as doenças que tenho) para além dos papéis que, embora rasgados, revelarão a alguém com paciência dados de consumidor e bancários.
Poderia recorrer a um destruidor de papel; mas o processo é demorado e nem todo o papel é adequado; não posso, por exemplo, destruir nele as caixas dos “gadgets”, da Décatlon, do IKEA…
Tudo isso permite, muito facilmente, a alguém mal intencionado, não apenas conhecer os meus hábitos de consumo, mas igualmente o que tenho em casa a merecer uma visita na minha ausência.
Mas, pior, dei comigo a pensar, são certos eletrodomésticos que, mesmo avariados, guardam demasiada informação minha e dos meus. Por exemplo, telemóveis e telefones fixos, pen drive, discos velhos de computadores…
Ora ontem, a pensar nisto, levei trastes para o Ponto Electrão próximo. Entre eles, um telefone avariado, um Kindle com muitos dos meus escritos, na sua maior parte inéditos, e um velho disco de computador. Já a pensar no pior, deixei-o cair no chão várias vezes, mas não tenho a certeza de o ter avariado. (Não o formatei por não ter onde).
Eu a pôr os objectos na gaveta do Ponto Electrão e um cavalheiro, creio que estrangeiro, a pedir-mos.
Recusei. Uma besta avarenta e mesquinha, terá ele pensado.
Paciência. Havia demasiada informação pessoal naqueles dispositivos, recuperável com um mínimo de conhecimento.
Entrei no carro e segui, convencido de que mal me afastasse ele iria retirar os meus monos do contentor.