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terça-feira, 7 de março de 2023

Oradores e escritores

Num conto de Ray Bradbury*, uma personagem, que se depreende ser Hemingway, mas sempre referida como o Velho, interpela o protagonista e narrador:

"-- Você sabe falar -- comentou.

-- Nasceu comigo.

-- Daria um péssimo escritor -- prosseguiu. -- Nunca conheci um escritor que fosse um bom orador. "

Parece afirmação provocatória, que vai de encontro à crença generalizada de que o escritor sabe falar bem. Por isso, os escritores são amiúde convidados a falar em público, em encontros, festivais literários, nas escolas, na rádio, até na televisão.

(São ouvidos, mas à borla; são escutados, mas não lidos; e duvido que depois lhes comprem os livros, mas estas são outras histórias, talvez para outras ocasiões.)

Um bom orador precisa de qualidades específicas, que não são as que fazem o escritor, e vão muito além das capacidades de efabular e de cativar a atenção: aspecto, presença, voz, dicção, forte presença de espírito, argúcia, muita esperteza (a inteligência dos burros, como dizia uma professora minha), vivência em sociedade e domínio dos respectivos maneirismos, capacidade de empatia com o seu público, indo de encontro ao que pressente que a audiência quer ouvir, etc. Como exemplo, os nossos políticos e comentadores, os advogados e juristas que preenchem os espaços televisivos de debate, são, regra geral, bons oradores, fazendo jus ao dito popular “quem o ouve falar não o leva preso”. Que eu saiba, nenhum é escritor.

O escritor pode ser — e muitas vezes é — criatura insignificante e quase desprezível, como o insecto de Kafka, embirrento, maníaco, desinteressante, gago como Somerset Maugham, pode ter pronúncia cerrada, voz feia, ser incapaz de cativar audiências, de empolgar os ouvintes. Para quê, então, querer ouvi-lo, quando a sua linguagem é outra, se o espaço em que, eventualmente, brilha é o do texto escrito, em que põe tudo o que tem, tudo aquilo de que é capaz, tudo aquilo que tem para dizer? 


*Ray Bradbury, "Rumo a Quilimanjaro", in As Vozes de Marte, (I sing the body electric), colecção Argonauta, Ed. Livros do Brasil, Lisboa)

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