As férias grandes eram então grandes, intermináveis na solidão aldeã, os rapazes da minha geração aprendendo ofícios por aqui e por ali, os estudantes fechados em casa a marrar para os exames de segunda época ou a banhos na Nazaré. Na aldeia, que a imigração esvaziara, o convívio quase se resumia a um longo bocejo ao serão, em frente à televisão do café, por entre velhos que jogavam dominó e menos velhos de corpo, igualmente envelhecidos de espírito, que discutiam a bola. Vivia só com a minha avó, os meus pais mourejando na Holanda, em Amesterdão, com os meus irmãos. Apenas eu, o mais velho, ficara. Por companhia, os livros que mensalmente requisitava na biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian, uma telefonia que apanhava a Emissora Nacional -- e os sonhos.
E numa manhã, enquanto a minha avó me contava as novidades do dia – quem namorava quem, quem ralhara, quem fizera as pazes, o que esta dissera daquela – ouvi pela primeira vez Brel. De imediato me impressionou aquela voz poderosa, máscula, dura, nos antípodas das cantorias lamechas e efeminadas que preenchiam as emissões da rádio. No meu Francês ainda incipiente, compreendi que falava daquele porto que eu conhecera no ano anterior, dos marinheiros que lá nasciam e morriam, que bebiam à saúde das putas – sim, “des putains d’Amsterdam, d’Hambourg ou d’ailleurs” numa época em que palavrões andavam arredados dos media... E eu escutei maravilhado aquela canção, aquela voz, diferentes de tudo o que até então ouvira, e aquela raiva gritada, falando de cerveja e de batatas fritas, dos marujos que tiram macacos (do nariz) nas estrelas e “mijam como eu choro sobre as mulheres infiéis”...Para ouvir Amsterdam, mal traduzida para Inglês (por exemplo: Batave, traduzido por boat, whore, é apenas um nome antigo para Holanda).
Foto: minha, tirada em Amesterdão, aí por 1976.
1 comentário:
Pois, Zé, "Ne me quitte pas" é cançao para a preferida de toda a gente.
(Eu já te disse para ouvires a versão que postei com o título "A culpada"? É a primeira gravação que se conhece e é fabulosa.)
Tens razão:"les marins qui pissent sur les femmes infidèles" não são as minhas personagens. Mas os meus ouvidos, habituados aos sons da épica, não ficam indiferentes a "Sur le port d'Amesterdam il y a des marins que chantent" mesmo que "ils sentent la morue" e mesmo que "ils boivent à la santé des putains d'Amsterdam".
Sou uma breliana, Zé, desde sempre.
Olham vai lá ao youtube ouvir "Les vieux". Aquela letra é uma maravilha.
Bien le bonsoir, cher ami
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