"O ano anterior, 1931, fora um ano de seca terrível, como só haverá outra parecida no próximo século. Secaram as ribeiras de todo o ano, secaram as próprias nascentes, obrigando as mulheres a passar as noites de Verão na fonte, aguardando a vez para, pingo a pingo, encherem cântaros, canecos e bilhas enquanto aproveitam para pôr as conversas em dia. E quando a estiagem infernal estava prestes a terminar, os Montes arderam.
Nesse dia, o Jaime acordara com uma ligeira dor de cabeça, que piorava à imagem do tempo, cada vez mais pesado, cada vez mais soturno; de uma moinha tornara-se num latejar cada vez mais forte, como se a cabeça fosse rebentar, doendo ao menor movimento, disposição a condizer: rabugem, irascibilidade, impaciência para consigo próprio e para com os outros. Para piorar, tivera de ir enxofrar a vinha das Mogueiras, onde, vira na véspera, o oídio já entrara, apodrecendo precocemente os cachos de uvas.
O enxofre saía da torpilha e envolvia-o, colando-se-lhe às mãos, à face, dando-lhe um ar de Satanás amarelento e sulfuroso, naquele trabalho de inferno, sob um sol também ele amarelado e diabólico, que o queimava por fora enquanto o enxofre ardia por dentro, abrasando pulmões, garganta, secando narinas e boca... Encharcada pelo suor, a roupa colava-se-lhe ao corpo, assando-lhe os sovacos, as virilhas... Nem os pés escapavam, roídos pelas duras botas, que nem o sebo amaciava já, e que o arrastavam veloz de cepa em cepa, sempre envolvido na nuvem sulfurosa que acabaria com o cinzeiro, se não acabasse com ele primeiro...
De tempos a tempos, levantava a cabeça para olhar o céu, receando que as pesadas nuvens desabassem sobre a terra sequiosa, o que, pensava, se aliviaria a pressão na sua cabeça, deitaria a perder o seu trabalho, lavando o enxofre que penosamente aplicava sobre parras e cachos de uvas. Tinha acabado de despegar quando o céu explodiu em fogo e vento; o dia fez-se subitamente noite e a noite se tornava dia rasgada pela luz arrepiante dos relâmpagos. Nos Montes, as mulheres que preparavam já a ceia, estremeceram apavoradas com o ribombar dos trovões e de imediato entoaram a ladainha da Santa Bárbara, esperando que lhes acudisse na desgraça iminente:
Foi uma guerra antecipadamente perdida. Os campos secos incendiaram-se como um fósforo e as labaredas, empurradas pelo vendaval terrível que se levantara, atacaram os currais, os palheiros, as adegas e até as casas da periferia; o povo desuniu-se e cada qual procurou salvar o seu e acudir aos seus, permitindo que as chamas entrassem pelos Montes adentro, pelo Pátio dos Vieiras, inflamando as casas como fogueiras de Santo António, uma após outra, até à Rua Principal.
Desesperado, que também a sua casa pegava fogo, o regedor correu para o posto público, na loja da Tia Joaquina, e telefonou para Alcobaça, suplicando ajuda. O presidente da Câmara, alarmado com os gritos que ouvia distintamente pelo telefone, chegou à rua e vendo o clarão que iluminava o céu, disse: — Acudamos depressa, senão os Montes morrem queimados!
Chegou quase uma hora depois, à frente dos bombeiros, e logo se atiraram todos ao combate desigual, trazendo alento ao povo já exausto; porém, dos Montes só restaria um brasido se não tivesse chegado ajuda vinda do Alto, como se Deus se tivesse apiedado ou então considerasse suficiente o castigo: desabou uma tromba de água, e o povo, cristão e ateu, caiu de joelhos, entoando Bendito seja o Senhor lá nas alturas! As chamas enfraqueceram e homens, mulheres e garotos, molhados que nem pintos, tremendo de frio e ardendo em calor, conseguiram até à madrugada circunscrever os incêndios, apartando-os uns dos outros.
O nascer do dia mostrou a devastação, cada qual avaliando os prejuízos, procurando ainda salvar relógio de sala, cadeira, ou galinha; então, ergueu-se em uníssono um coro de lamentações, como se as mulheres carpissem em simultâneo a morte de todos os homens da aldeia; não, elas choravam a perda dos parcos haveres, o sofrimento futuro, sem tecto, sem mobiliário, sem gado, sem ninguém que lhes acudisse, enquanto davam punhadas no próprio peito, arrancavam os cabelos, rasgavam os joelhos pelas pedras da rua: — Valei-me, Senhora de Fátima, que irá ser de mim e dos meus meninos? Depois, tendo carpido as perdas próprias e alheias, com a coragem do desespero, tocaram mais uma vez a burra para diante."
Entre Cós e Alpedriz
Nesse dia, o Jaime acordara com uma ligeira dor de cabeça, que piorava à imagem do tempo, cada vez mais pesado, cada vez mais soturno; de uma moinha tornara-se num latejar cada vez mais forte, como se a cabeça fosse rebentar, doendo ao menor movimento, disposição a condizer: rabugem, irascibilidade, impaciência para consigo próprio e para com os outros. Para piorar, tivera de ir enxofrar a vinha das Mogueiras, onde, vira na véspera, o oídio já entrara, apodrecendo precocemente os cachos de uvas.
O enxofre saía da torpilha e envolvia-o, colando-se-lhe às mãos, à face, dando-lhe um ar de Satanás amarelento e sulfuroso, naquele trabalho de inferno, sob um sol também ele amarelado e diabólico, que o queimava por fora enquanto o enxofre ardia por dentro, abrasando pulmões, garganta, secando narinas e boca... Encharcada pelo suor, a roupa colava-se-lhe ao corpo, assando-lhe os sovacos, as virilhas... Nem os pés escapavam, roídos pelas duras botas, que nem o sebo amaciava já, e que o arrastavam veloz de cepa em cepa, sempre envolvido na nuvem sulfurosa que acabaria com o cinzeiro, se não acabasse com ele primeiro...
De tempos a tempos, levantava a cabeça para olhar o céu, receando que as pesadas nuvens desabassem sobre a terra sequiosa, o que, pensava, se aliviaria a pressão na sua cabeça, deitaria a perder o seu trabalho, lavando o enxofre que penosamente aplicava sobre parras e cachos de uvas. Tinha acabado de despegar quando o céu explodiu em fogo e vento; o dia fez-se subitamente noite e a noite se tornava dia rasgada pela luz arrepiante dos relâmpagos. Nos Montes, as mulheres que preparavam já a ceia, estremeceram apavoradas com o ribombar dos trovões e de imediato entoaram a ladainha da Santa Bárbara, esperando que lhes acudisse na desgraça iminente:
Santa Bárbara, bendita
que nos céus está escrita
a papel e água benta
levai para longe esta tormenta
para onde não haja garfo nem colher
nem vaca nem vitelo
nem homem nem mulher...
Grandes deviam ser os pecados do Homem, porque a tormenta, em vez de se afastar, aproximou-se e já não era só o firmamento que despejava fogo sobre a terra, era também a terra que crescia em labaredas ao encontro daquelas que desciam do céu: com um ruído assustador, levantara-se pouco antes um vento quente e seco, que rapidamente espalhou em todas as direcções as chamas que os raios haviam ateado. Então céu e terra uniram-se, tudo vermelho, tudo chamas, sem piedade pela vida de árvores, animais e pessoas. O sino tocou a rebate, o povo saiu à rua, carregando baldes, canecos, almudes e enxadas, sob o uivo fúnebre das mulheres, que carpiam já a desgraça pressentida, todos sabendo que o fogo é pior do que um ladrão, pois não se contenta em roubar e em matar, precisa de destruir tudo por onde passa.que nos céus está escrita
a papel e água benta
levai para longe esta tormenta
para onde não haja garfo nem colher
nem vaca nem vitelo
nem homem nem mulher...
Foi uma guerra antecipadamente perdida. Os campos secos incendiaram-se como um fósforo e as labaredas, empurradas pelo vendaval terrível que se levantara, atacaram os currais, os palheiros, as adegas e até as casas da periferia; o povo desuniu-se e cada qual procurou salvar o seu e acudir aos seus, permitindo que as chamas entrassem pelos Montes adentro, pelo Pátio dos Vieiras, inflamando as casas como fogueiras de Santo António, uma após outra, até à Rua Principal.
Desesperado, que também a sua casa pegava fogo, o regedor correu para o posto público, na loja da Tia Joaquina, e telefonou para Alcobaça, suplicando ajuda. O presidente da Câmara, alarmado com os gritos que ouvia distintamente pelo telefone, chegou à rua e vendo o clarão que iluminava o céu, disse: — Acudamos depressa, senão os Montes morrem queimados!
Chegou quase uma hora depois, à frente dos bombeiros, e logo se atiraram todos ao combate desigual, trazendo alento ao povo já exausto; porém, dos Montes só restaria um brasido se não tivesse chegado ajuda vinda do Alto, como se Deus se tivesse apiedado ou então considerasse suficiente o castigo: desabou uma tromba de água, e o povo, cristão e ateu, caiu de joelhos, entoando Bendito seja o Senhor lá nas alturas! As chamas enfraqueceram e homens, mulheres e garotos, molhados que nem pintos, tremendo de frio e ardendo em calor, conseguiram até à madrugada circunscrever os incêndios, apartando-os uns dos outros.
O nascer do dia mostrou a devastação, cada qual avaliando os prejuízos, procurando ainda salvar relógio de sala, cadeira, ou galinha; então, ergueu-se em uníssono um coro de lamentações, como se as mulheres carpissem em simultâneo a morte de todos os homens da aldeia; não, elas choravam a perda dos parcos haveres, o sofrimento futuro, sem tecto, sem mobiliário, sem gado, sem ninguém que lhes acudisse, enquanto davam punhadas no próprio peito, arrancavam os cabelos, rasgavam os joelhos pelas pedras da rua: — Valei-me, Senhora de Fátima, que irá ser de mim e dos meus meninos? Depois, tendo carpido as perdas próprias e alheias, com a coragem do desespero, tocaram mais uma vez a burra para diante."
Entre Cós e Alpedriz
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