"Capítulo 7. A PROFESSORA
--- E eu, o senhor rei, as minhas barbas arrancarei!
Os alunos, desde os pequeninos da primeira classe, sentados na fila da frente, aos matulões da quarta, ao fundo, todos aguardavam sofregamente a continuação da história, bocas abertas, olhos esbugalhados:
--- E, dizendo isto, deitou a mão às barbas e arrancou-as!
Eram seus. Tinha-os rendidos à narrativa, presos pelo seu talento de contadora de histórias, tão atentos que se ouviam as moscas, escutava-se até o som da respiração dos mais próximos. Pena o ensino não ser apenas um rosário interminável de histórias, pena não fazerem parte do exame da quarta classe --- talvez assim a concluíssem mais cedo.
Chegara uma década atrás, os dezoito anos feitos quatro meses antes, inexperiente e receosa, mas certa da importância social da profissão que ia exercer e confiante em que o seu próprio exemplo daria esperança aos alunos: pobre e órfã, fora criada e tivera os estudos pagos por uma tia, já viúva, que sobrevivia alugando quartos a estudantes, inventando milagres orçamentais para que o dinheiro esticasse até ao final do mês. O Magistério Primário fora opção natural, após o curso de Formação Feminina --- o liceu era para moças de outra condição.
Idealismo da juventude e sentido de missão, reforçado ao longo do curso, necessidade moral de ajudar necessitados retribuindo o bem que a tia lhe fizera, davam-lhe, pensava, o alento e a autoridade para lutar contra a tacanhez e a miséria, não raro justificadas com a tradição e exteriorizadas em porcaria, maus tratos e subnutrição. Horrorizou-a a indigência daquela gente, inimaginável até para si própria, que sempre se julgara pobre: viviam como animais, não raro com os animais, numa promiscuidade e numa porcaria quase inconcebíveis, a miséria agravada pela ignorância.
Os aldeãos riam-se das suas ideias ingénuas, depreciavam-nas por provirem de jovem e de mulher, desconfiavam do desinteresse das mudanças que defendia, recusavam-se a alterar o que quer que fosse no seu modo de vida ancestral, talvez apenas para a contrariar, para que fracassasse e se circunscrevesse à sua função: ensinar à força de pancada aquilo que as crianças recusavam aprender, para que terminassem depressa a quarta classe e libertos da escola pudessem começar a trabalhar a sério, contribuindo para o orçamento de fome da família: “o trabalho de criança vale pouco, mas quem o não aproveita é louco”; porém, os alunos aprendiam pouco e devagar, não tanto por falta de tareia, como se criticava na terra, mas por desinteresse e, num caso ou noutro, burrice crónica, a que não eram alheias as sopas de cavalo cansado que os mantinham de pé; na escola, encarcerados durante horas, os rapazes, aguardavam impacientemente a hora de saída para apascentarem o gado pela liberdade das encostas da serra; as raparigas olhavam para a professora, fixamente, como se bebessem as suas palavras, enquanto sonhavam servir na vila, namorando ao fim-de-semana no jardim público magala que, casando, as libertasse da servidão, abrindo-lhes outros horizontes, se não se contentasse apenas em abrir-lhes as pernas...
Moços e moças arrastavam-se assim pelos bancos da escola com o prazer do cão que, à falta de melhor, se vê obrigado a roer o ferro que o sujeita, os mais velhos já barbados, elas de peito farto e trancas largas como vigas-mestras, não raro maiores e mais fortes do que a própria professora --- alguns tão crescidos que, receosa da má-língua, evitava inspeccionar-lhes as cabeças à cata de lêndeas e de piolhos.
Em cada Outubro nova fornada, nova esperança. Embevecia-se com os olhos sonhadores, apaixonados, que a fitavam ingenuamente, mas o dever obrigava-a a tentar ensinar aquelas cabecitas tontas, que depressa se desinteressavam, os olhares fugindo constantemente pelas janelas até às ladeiras da serra onde, já libertos da escola pela idade ou por terem passado no exame da quarta classe, jovens cabreiros apascentavam rebanhos, disciplinavam com pedrada certeira animais renitentes, deitavam abaixo rola que se julgava segura no alto de pinheiro --- enquanto na sala de aula os moços, enclausurados, se ainda sonhavam apaixonados com a professora, certamente a envolviam já em guerras e amores pelas serranias, defendendo-a galhardamente de lobos e de salteadores. As mães, descontentes por os filhos não chegarem a casa devidamente sovados, receosas de que os desprezasse ao ponto de os não espancar diariamente, de cada vez que a encontravam, recomendavam-lhe que não lhe doesse a mão sempre que precisasse de os educar.
Às vezes, raramente, tinha alunos interessados e diligentes, mas nenhum como a Berta, uma bonequinha de porcelana que destoava naquela aspereza serrana, a pele alva como a neve, o cabelo reluzente como mel, o trato afável e humilde, esmerada e briosa na elaboração dos deveres. Se acaso faltava, a mando da mãe, como então era uso na terra, a mestra ia procurá-la, ralhando por a não deixar ir à escola --- que lhe fazia falta em casa, retrucava a progenitora; precisava que a catraia a ajudasse, tomando conta dos irmãos mais novos e fazendo o comer, para ela própria poder ganhar a jorna quando havia trabalho. A professora ameaçava-a com a Guarda e a mãe cedia --- até nova necessidade.
Se dependesse apenas de si própria, a Berta jamais faltaria. Gostava muito da escola, dos livros que a professora, vendo o seu amor à leitura, lhe emprestava; adorava o cheiro da tinta permanente com que copiava pacientemente textos para o caderno de duas linhas, dispondo harmoniosamente as letras com a ternura com que as outras meninas acarinhavam borregos recém-nascidos; não apreciava tabuada nem contas, incomodada pelo ruído áspero do ponteiro ao deslizar pela pedra, e errava-as frequentemente, trocando a aritmética por sonhos com castelos e príncipes das histórias da Condessa de Ségur. Sentava-se ao fundo da sala, onde os colegas dificilmente a podiam perturbar, picando-a no rabo, na perna, nas costas, com os aparos das canetas de pau ou com o bico aguçado dos lápis; mesmo aí, não estava a salvo, que inventavam pretextos para saírem do lugar e, se possível, arreliarem alguém no breve percurso:
--- Minha senhora, pediam a toda a hora, posso ir afiar o lápis?, eles e elas que a natureza não dotara de paciência para estar sentados, quietos e calados durante tantas e tão longas horas enquanto de fora chegava o assobiar melodioso dos melros, baliam ao longe os cordeiros do ano, sussurrava o vento nos pinheirais das encostas, o murmúrio dos regatitos das encostas chamava-os insidiosamente como alcantis e penhascos atraíam irresistivelmente os rebanhos de cabras...
--- Se eu pudesse fazer qualquer coisa!, angustiava-se a cada perda de criança promissora, já fadada para o destino serrano. Chegara a falar com a mãe da Berta --- com o pai não havia conversas, e chegara-lhe aos ouvidos que espancara brutalmente a mulher quando, a medo, lhe transmitira sugestões da professora para um futuro diferente para a filha, entre acusações e insultos bem gritados à “conselheira”, a dar palpites sobre a sua filha, em vez de tratar da própria vida, arranjando homem que a montasse e disciplinasse. "
Inédito meu. Ler todo o capítulo
--- E eu, o senhor rei, as minhas barbas arrancarei!
Os alunos, desde os pequeninos da primeira classe, sentados na fila da frente, aos matulões da quarta, ao fundo, todos aguardavam sofregamente a continuação da história, bocas abertas, olhos esbugalhados:
--- E, dizendo isto, deitou a mão às barbas e arrancou-as!
Eram seus. Tinha-os rendidos à narrativa, presos pelo seu talento de contadora de histórias, tão atentos que se ouviam as moscas, escutava-se até o som da respiração dos mais próximos. Pena o ensino não ser apenas um rosário interminável de histórias, pena não fazerem parte do exame da quarta classe --- talvez assim a concluíssem mais cedo.
Chegara uma década atrás, os dezoito anos feitos quatro meses antes, inexperiente e receosa, mas certa da importância social da profissão que ia exercer e confiante em que o seu próprio exemplo daria esperança aos alunos: pobre e órfã, fora criada e tivera os estudos pagos por uma tia, já viúva, que sobrevivia alugando quartos a estudantes, inventando milagres orçamentais para que o dinheiro esticasse até ao final do mês. O Magistério Primário fora opção natural, após o curso de Formação Feminina --- o liceu era para moças de outra condição.
Idealismo da juventude e sentido de missão, reforçado ao longo do curso, necessidade moral de ajudar necessitados retribuindo o bem que a tia lhe fizera, davam-lhe, pensava, o alento e a autoridade para lutar contra a tacanhez e a miséria, não raro justificadas com a tradição e exteriorizadas em porcaria, maus tratos e subnutrição. Horrorizou-a a indigência daquela gente, inimaginável até para si própria, que sempre se julgara pobre: viviam como animais, não raro com os animais, numa promiscuidade e numa porcaria quase inconcebíveis, a miséria agravada pela ignorância.
Os aldeãos riam-se das suas ideias ingénuas, depreciavam-nas por provirem de jovem e de mulher, desconfiavam do desinteresse das mudanças que defendia, recusavam-se a alterar o que quer que fosse no seu modo de vida ancestral, talvez apenas para a contrariar, para que fracassasse e se circunscrevesse à sua função: ensinar à força de pancada aquilo que as crianças recusavam aprender, para que terminassem depressa a quarta classe e libertos da escola pudessem começar a trabalhar a sério, contribuindo para o orçamento de fome da família: “o trabalho de criança vale pouco, mas quem o não aproveita é louco”; porém, os alunos aprendiam pouco e devagar, não tanto por falta de tareia, como se criticava na terra, mas por desinteresse e, num caso ou noutro, burrice crónica, a que não eram alheias as sopas de cavalo cansado que os mantinham de pé; na escola, encarcerados durante horas, os rapazes, aguardavam impacientemente a hora de saída para apascentarem o gado pela liberdade das encostas da serra; as raparigas olhavam para a professora, fixamente, como se bebessem as suas palavras, enquanto sonhavam servir na vila, namorando ao fim-de-semana no jardim público magala que, casando, as libertasse da servidão, abrindo-lhes outros horizontes, se não se contentasse apenas em abrir-lhes as pernas...
Moços e moças arrastavam-se assim pelos bancos da escola com o prazer do cão que, à falta de melhor, se vê obrigado a roer o ferro que o sujeita, os mais velhos já barbados, elas de peito farto e trancas largas como vigas-mestras, não raro maiores e mais fortes do que a própria professora --- alguns tão crescidos que, receosa da má-língua, evitava inspeccionar-lhes as cabeças à cata de lêndeas e de piolhos.
Em cada Outubro nova fornada, nova esperança. Embevecia-se com os olhos sonhadores, apaixonados, que a fitavam ingenuamente, mas o dever obrigava-a a tentar ensinar aquelas cabecitas tontas, que depressa se desinteressavam, os olhares fugindo constantemente pelas janelas até às ladeiras da serra onde, já libertos da escola pela idade ou por terem passado no exame da quarta classe, jovens cabreiros apascentavam rebanhos, disciplinavam com pedrada certeira animais renitentes, deitavam abaixo rola que se julgava segura no alto de pinheiro --- enquanto na sala de aula os moços, enclausurados, se ainda sonhavam apaixonados com a professora, certamente a envolviam já em guerras e amores pelas serranias, defendendo-a galhardamente de lobos e de salteadores. As mães, descontentes por os filhos não chegarem a casa devidamente sovados, receosas de que os desprezasse ao ponto de os não espancar diariamente, de cada vez que a encontravam, recomendavam-lhe que não lhe doesse a mão sempre que precisasse de os educar.
Às vezes, raramente, tinha alunos interessados e diligentes, mas nenhum como a Berta, uma bonequinha de porcelana que destoava naquela aspereza serrana, a pele alva como a neve, o cabelo reluzente como mel, o trato afável e humilde, esmerada e briosa na elaboração dos deveres. Se acaso faltava, a mando da mãe, como então era uso na terra, a mestra ia procurá-la, ralhando por a não deixar ir à escola --- que lhe fazia falta em casa, retrucava a progenitora; precisava que a catraia a ajudasse, tomando conta dos irmãos mais novos e fazendo o comer, para ela própria poder ganhar a jorna quando havia trabalho. A professora ameaçava-a com a Guarda e a mãe cedia --- até nova necessidade.
Se dependesse apenas de si própria, a Berta jamais faltaria. Gostava muito da escola, dos livros que a professora, vendo o seu amor à leitura, lhe emprestava; adorava o cheiro da tinta permanente com que copiava pacientemente textos para o caderno de duas linhas, dispondo harmoniosamente as letras com a ternura com que as outras meninas acarinhavam borregos recém-nascidos; não apreciava tabuada nem contas, incomodada pelo ruído áspero do ponteiro ao deslizar pela pedra, e errava-as frequentemente, trocando a aritmética por sonhos com castelos e príncipes das histórias da Condessa de Ségur. Sentava-se ao fundo da sala, onde os colegas dificilmente a podiam perturbar, picando-a no rabo, na perna, nas costas, com os aparos das canetas de pau ou com o bico aguçado dos lápis; mesmo aí, não estava a salvo, que inventavam pretextos para saírem do lugar e, se possível, arreliarem alguém no breve percurso:
--- Minha senhora, pediam a toda a hora, posso ir afiar o lápis?, eles e elas que a natureza não dotara de paciência para estar sentados, quietos e calados durante tantas e tão longas horas enquanto de fora chegava o assobiar melodioso dos melros, baliam ao longe os cordeiros do ano, sussurrava o vento nos pinheirais das encostas, o murmúrio dos regatitos das encostas chamava-os insidiosamente como alcantis e penhascos atraíam irresistivelmente os rebanhos de cabras...
--- Se eu pudesse fazer qualquer coisa!, angustiava-se a cada perda de criança promissora, já fadada para o destino serrano. Chegara a falar com a mãe da Berta --- com o pai não havia conversas, e chegara-lhe aos ouvidos que espancara brutalmente a mulher quando, a medo, lhe transmitira sugestões da professora para um futuro diferente para a filha, entre acusações e insultos bem gritados à “conselheira”, a dar palpites sobre a sua filha, em vez de tratar da própria vida, arranjando homem que a montasse e disciplinasse. "
Inédito meu. Ler todo o capítulo
4 comentários:
Li o capítulo de um só fôlego. Com vontade de mais.
Agora, só espero a sua publicação.
Obrigado pela partilha.
Reinaldo
Reinaldo:
Este capítulo é parte de uma novela minha recentemente concluída. Anda por aí a fazer pela vida, até agora sem nenhum sucesso, o que não espanta, porque idêntico destino tiveram os irmãos mais velhos. Embora eu seja tão suspeito como a coruja da fábula, afirmo que é muito boa, com partes muito bonitas e um final de história que me surpreendeu.
Cipriano,
O raio do capítulo deixou-me água na boca
Espero que a novela venha mesmo à luz do dia, gosto pouco de livros nas estantes, muito menos nas gavetas, como parece ser o caso.
Se aceitares, a pré-encomenda fica já aqui registada.
É como te digo: a novela anda por aí a lutar por um lugar ao sol, por enquanto nos raríssimos concursos que vão surgindo e a que se pode candidatar - porque o autor tem mais de 35 anos, ou não mora no concelho, ou não tem o nº de páginas necessário, ou...ou... Até agora sem sucesso. Perdeu na Amadora e aguarda outra derrota. Começo a dar razão ao João, quando lhe disse que ia enviar a novela para uns concursos: "Para quê? Os prémios já estão atribuídos!"
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