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terça-feira, 29 de novembro de 2011

O pretérito do futuro

Na cidade não havia trigo pera vender, e, se o havia, era mui pouco e tão caro, que as pobres gentes não podiam chegar a elo; (...) e começaram de comer pão de bagaço de azeitona, e dos queijos das malvas e raízes das ervas e doutras desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza; e tais hi havia que se mantinham em alféloa.
No lugar hu costumavam vender o trigo, andavam homens e moços esgaravatando a terra, e se achavam alguns grãos de trigo, metiam-nos na boca, sem tendo outro mantimento. Outros se fartavam de ervas e bebiam tanta água, que achavam mortos homens e cachopos jazer inchados nas praças e em outros lugares.
Das carnes isso mesmo havia em ela grande míngua.(...) E começaram a comer a carne das bestas; e não somente os pobres e minguados, mas grandes pessoas da cidade, lazerando não sabiam que fazer, e os gestos mudados com fame, bem mostravam seus encobertos padecimentos. (...)
Desfalecia o leite àquelas que tinham crianças a seus peitos per míngua de mantimento; e vendo lazerar seus filhos, a que acorrer não podiam, choravam amiúde sobre eles a morte, ante que a morte os privasse da vida. (...)
Toda a cidade era dada a nojo, cheia de mesquinhas querelas, sem nenhum prazer que hi houvesse: uns com gram míngua do que padeciam, outros havendo dó dos atribulados. E isto não sem razão, ca se é triste e mesquinho o coração cuidoso nas cousas contrairas que lhe avir podem, vede que fariam aqueles que as continuadamente tão presentes tinham! (...)
Como não quereis que maldissessem sa vida e desejassem morrer alguns homens e mulheres, que tanta diferença há de ouvir estas cousas àqueles que as então passaram, como há da vida à morte? (...).
Pera que é dizer mais de tais falecimentos? (...)
Oh, geração que depois veio, povo bem-aventurado que não soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais padecimentos! (...)
Fernão Lopes, Crónica de D. João I

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