As crianças jogavam ao Entrudo. As pobres, que as mais remediadas não se expunham ao ridículo público. Entrouxávamo-nos com vestuário feminino, rosto escondido por meia de vidro surripiada a uma das tias -- nem nos passava pela cabeça meter-lhe tesoura recortando buracos para boca e olhos. Na mão, cajado ameaçador, e saíamos à rua a atemorizar. Os homens riam, as mulheres fingiam medo, as raparigas já fora de idade para entrudos ridicularizavam, escarneciam das minhas pernas peladas, elas que as tinham já peludas como as das aranhas:
-- Olha-me as pernas daquela!
Deitavam-se a adivinhar quem seria, algumas mais atrevidas agarravam-me, o que não era difícil, cambaleante nos saltos altos da minha tia, e arrancavam-me a meia da cara. Mais adiante, talvez encontrasse outros entrudos, em magote percorríamos a aldeia, demorávamo-nos no adro da igreja cobrando gargalhadas e incitamentos, voltávamos a casa, cansados mas orgulhosos: ousáramos ser entrudos.
Pouco depois o Entrudo morreu. Agonizou com a chegada das máscaras de Zorro, pistolas de água, peidos engarrafados, estalinhos, bombinhas, e foi-se de vez quando a televisão trouxe o Carnaval, o negócio carnavalesco se impôs, a alegria plastificada se generalizou.
Já nenhuma criança queria passar por campónia, o Mundo tornava-se coisa séria. Rir, brincar, jogar, sem dúvida. Mas vestida a rigor, respeitando os cânones. Fazendo como os outros, para não destoar. Ao Entrudo chocalheiro e chocarreiro sucedeu o Carnaval comercial e consumista.
FOTO: La Coruña, 2004
FOTO: La Coruña, 2004
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