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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ao avizinhar do Dia de Finados

Nasci pobre, criei-me sem mimos, sem conforto, sem brinquedos. Mas a pobreza daqueles tempos não era só material: escasseavam também os afectos, ou pelo menos, gestos de carinho, manifestações de ternura, e sobravam ralhos, repreensões, bofetadas, por vezes cinturadas — castigos invariavelmente agravados pelo meu feitio orgulhoso, que me impedia de manifestar arrependimento pelas asneiras, as quais não eram, parece-me ainda hoje, nem muitas, nem muito graves.
Fiz-me egoísta, tímido, solitário, reservado. Esquivo como bicho bravio. A forte miopia, então por diagnosticar, facilitava o isolamento —   a pouca distância, os vultos tinham rosto indistinto, a mesma névoa os confundia:
"É um bruto! Não conhece ninguém!" — comentava mulher de preto igual a todas as outras, cara quase escondida por lenço, mesmos pés descalços, igual cântaro à cabeça. E eu, olhos sempre baixos, refugiava-me no meu ouriço, alheado da realidade, defendido pelos espinhos da indiferença; e por pudor não exprimia emoções, rejeitava o carinho, reagia à bruta a débeis manifestações de afecto.

Tenho bem vivas as recordações da infância; mas nelas não há beijos, nem abraços, nem quaisquer carícias dos meus avós, dos meus tios e tias. Nem dos meus pais. Nunca disse aos meus avós que gostava deles. Como se tal estivesse implícito por pertencermos à mesma família. Se é que gostava. E, todos o repetiam, essas “mariquices” não eram próprias de rapaz.
A meu pai, a sua morte inesperada, debaixo do tractor, roubou-me a oportunidade de lho dizer  — embora, nunca duvidei disso, ele o soubesse bem. Disse-o à minha mãe, mas apenas nos Cuidados Intensivos de Santa Maria, quando a sua morte nos parecia, a ambos, iminente e fraquejei em choradeira incontida...
Nunca os visito no cemitério. Mas rara é a noite em que os meus mortos me não visitam durante os sonhos, em que não conversamos — e o meu pai morreu há vinte anos. Raro é o dia em que não recordo momentos partilhados com todos eles. E sempre me dói o que perdemos: creio hoje que todos teriam apreciado gestos de ternura, palavras de afecto, que então evitámos, que então calámos. Porquê?
Preconceitos, suponho. E mais me dói a recordação do que então não fiz, do que não disse, do que não tive, quando o Afonso, após duas semanas de ausência, se me lança ao pescoço e com a espontaneidade dos seus sete anos me diz: "Avô, tive saudades tuas!" E o Miguel, cinco anos, me abraça e, diz, vai dar-me “Sete beijinhos.” Quando, a brincar, repito ao Tiago, três anos e tal, sentado comigo no banco de jardim onde saboreio o sossego do fim da tarde, o ralho que mais ouvi na infância: “Mas tu nunca te calas?” e o malandro me surpreende: “Não, avôzinho!” E vendo-me derretido com o diminutivo toda a tarde me trata por avôzinho! E hoje, o João, a caminho dos dois anos, com quem não estou há quase duas semanas, ao ver-me aparecer no FaceTime prontamente resplandece em sorriso e me cumprimenta: "avô!".

Porque é que terei perdido tudo isto na minha infância?

FOTO: o meu pai, orgulhoso do atomizador Fontan que comprara recentemente, o meu tio Zé, o meu primo Fernando, e o meu irmão Afonso montado na nossa motorizada Mondial. Por volta de 1970. Não apareço porque fui o fotógrafo.

5 comentários:

Sofia disse...

O mais importante é que apesar de não teres recebido os afectos dos teus pais ou avós isso não te impede de os dar às tuas filhas e netos. E não impede, porque nenhum de nós duvida que o mais importante que temos mesmo é a nossa família. Podemos não dizê-lo, mas ninguém tem dúvidas que, uns pelos outros, faríamos o que fosse preciso.

Anónimo disse...

Eu sinto o mesmo, nao passa dia que nao me lembre deles. E ao ler isto chorei porque sinto o mesmo e a mesma falta. Mas sao pequenas coisas ou palavras que nos fazer sorrir e continuar. Beijos.

Reinaldo Amarante disse...

É um assunto demasiado pessoal e privado (apesar de o teres partilhado connosco)para me alongar. Subscrevo totalmente o que escreveu a Sofia. É o que sinto.

JCC disse...

Muito obrigado pelos vossos comentários.

Um Jeito Manso disse...

Não me revejo muito no que aqui escreve pois vivi entre afectos. No entanto, apesar disso nada que se compare com a espontaneidade e informalidade actual. Nunca nos devemos furtar a partilhar e exprimir o afecto.

Não o fazer é privarmo-nos da parte melhor da vida.

Li o seu texto com emoção. Está muito bem escrito e muito envolvente. E os seus netos devem gostar muito de si o que prova que é um avô muito afectuoso (como devem ser todos os que têm a sorte de poder abraçar os seus netos).

Parabéns por este belíssimo texto.