Todas as manhãs, a caminho da faculdade -- o metro acabava então em Entrecampos --, a fazer tempo para a primeira aula, Latim, detinha-me em frente a montra a namorar livro por que me apaixonara. Não, nem pensar na extravagância de gastar com ele os escassos tostões, sempre bem contados, indispensáveis para as fotocópias e raros livros que não podia deixar de comprar. Estava em ano de azar, de dia estudante, a levantar pelas cinco da manhã, apanhar ronceiro comboio regional e passar o dia na faculdade, à tardinha caminho inverso, para trabalhar até à meia-noite, comer apressadamente e dormir o possível. O mais, estudava no comboio, dormia no comboio, corrigia os testes no comboio. Ao meu lado, trabalhadores ferroviários, mais ou menos da minha idade, ocupavam as viagens entre jogos de cartas e larachas. E eu, que sempre detestei madrugar, consolava-me: para mim, são só mais três anos. Para estes será a vida inteira...
No ano anterior, a vida pregara-me partida: por não ter assinalado com cruz quadrado no boletim de concurso, tinha sido excluído e passado a "mini-concursiano", com contrato e salário a terminar no fim de Julho para só voltar a receber bem depois de lá para Novembro recomeçar a actividade lectiva. E a minha mulher perdeu primeiro a habilitação própria de que dispunha, por alteração legislativa, e logo a seguir o emprego. Não havia então subsídio de desemprego para professores...
Foi o tempo em que voltei a comer esparguete. Pela primeira vez depois da tropa, onde aprendi a abominá-lo. Foi o tempo em que esperei pelo subsídio de natal, que recebia por duodécimos correspondentes aos meses em que trabalhara no ano anterior, para comprar roupa para a nossa filha -- então era só uma --, uns sapatos para mim, que os únicos que tinha, solas esburacadas, metiam água quando chovia. E o primeiro-ministro, Mario Soares de seu nome, entendeu mandar pagá-lo --com corte de um terço!
Certamente contristado ao olhar para os meus sapatos, a abrirem a boca, colega mais velho, a quem por isso mesmo continuo grato, arranjou-me explicações, que dava aos sábados à tarde. Sobrevivemos com parcimónia que hoje provocaria sorrisos de escárnio. E sempre pagámos pontualmente renda de casa, pequenas dívidas contraídas junto da família.
Pois lá para finais do ano lectivo, um poucochinho mais desafogados, que a minha mulher arranjara emprego, pude entrar na livraria e comprar o tal livro.
Com que prazer o li na viagem de regresso, à noite nos intervalos das aulas, depois vezes sem conta pela vida fora! Ainda hoje permanece vivo o carinho por esse Livre de Poche, de seu título Paroles, de Jacques Prévert, Dele aqui fica o belíssimo poema em que dois caracóis vão ao enterro de uma folha morta, seguido de paráfrase para eventuais leitores mais jovens, que porventura não dominem o Francês.
CHANSON DES ESCARGOTS QUI VONT À L'ENTERREMENT
"A l'enterrement d'une feuille morte
Deux escargots s'en vont
Ils ont la coquille noire
Du crêpe autour des cornes
Ils s'en vont dans le soir
Un très beau soir d'automne
Hélas quand ils arrivent
C'est déjà le printemps
Les feuilles qui étaient mortes
Sont toutes réssucitées
Et les deux escargots
Sont très désappointés
Mais voila le soleil
Le soleil qui leur dit
Prenez prenez la peine
La peine de vous asseoir
Prenez un verre de bière
Si le coeur vous en dit
Prenez si ça vous plaît
L'autocar pour Paris
Il partira ce soir
Vous verrez du pays
Mais ne prenez pas le deuil
C'est moi qui vous le dit
Ça noircit le blanc de l'oeil
Et puis ça enlaidit
Les histoires de cercueils
C'est triste et pas joli
Reprenez vous couleurs
Les couleurs de la vie
Alors toutes les bêtes
Les arbres et les plantes
Se mettent a chanter
A chanter a tue-tête
La vrai chanson vivante
La chanson de l'été
Et tout le monde de boire
Tout le monde de trinquer
C'est un très joli soir
Un joli soir d'été
Et les deux escargots
S'en retournent chez eux
Ils s'en vont très émus
Ils s'en vont très heureux
Comme ils ont beaucoup bu
Ils titubent un p'tit peu
Mais là-haut dans le ciel
La lune veille sur eux"
Jacques Prévert, Paroles
(Dois caracóis vão, carregados de luto, ao enterro de uma folha morta, numa noite de Outono; quando chegam, é já Primavera, as folhas mortas ressuscitaram, e os caracóis ficam desapontados; Mas o Sol convida-os a sentarem-se, a beberem um copo de cerveja (si le coeur vous en dit), as histórias de caixões são tristes e nada bonitas. Então todos os animais, as árvores e as plantas se põem a cantar a plenos pulmões a verdadeira canção dos seres vivos, a canção do Verão. E toda a gente a beber, e toda a gente a emborcar, é uma bela tarde de Verão. E os dois caracóis regressam a casa, comovidos, muito felizes. Como beberam bastante, vacilam um pouco, mas lá no alto do céu a Lua olha por eles.)
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