As noites alongavam-se intermináveis, eu esperava no café
das bombas de gasolina que amanhecesse para apanhar o primeiro autocarro,
voltar a casa, dormir, dormir. Aquele purgatório repetia-se sempre que estava
no turno das quatro à meia-noite.
A princípio, percorria a cidade adormecida a pé, dos
Parceiros aos Marrazes, à estação; experimentei deitar-me no mato, escondido
dos olhares, e tentei dormir. Mas o frio que remanescia da terra penetrava
cortante pelo capote, pelas camisolas, pela carne, chegava aos ossos, e pouco
tempo depois lá voltava eu ao café, o único que estava aberto durante toda a
noite. Uma bica, um rissol, a um canto ocupava o tempo a escrever. Panfletos
que depois haveria talvez de bater à máquina, imprimir na maquineta, esse
copiador artesanal, e pela calada na noite deixar debaixo de automóveis
estacionados, uma pedrinha em cima, para que só fossem descobertos muito depois
de eu por lá ter passado. Ou poemas – textos empolgados, abundantemente
adjectivados, recheados de metáforas e imagens, que há muito destrui. Assim ocupava
a solidão dessas noites.
Aí pelas três, quatro da madrugada, quando cabeceava com
sono, chegavam em vários carros sete ou oito clientes, sempre os mesmos. Com
histórias de grandeza imaginária, à portuguesa, a impressionar ouvintes, mas
sobretudo com fados. Ali ficávamos, o dono do café atrás do balcão, eu a
escrevinhar, os fadistas a animarem a noite. Tinham jeito. Tinham garra. E
desconfiavam de mim, naquele tempo em que todos desconfiávamos uns dos outros: que
fazia eu ali àquelas horas, quando todos os outros dormiam? Nunca mo
perguntaram. Mas pressentia a desconfiança nos seus olhares.
Até que um dia, já depois do 25 de Abril, um dos calmeirões se
me dirigiu, como se falasse para o grupo: quem era aquele gajo, sempre a ouvir
e tirar notas?
Ah, não! Tudo podia ser – menos bufo. E puxei dos galões.
Era dirigente da Comissão de Trabalhadores, do Comité Operário dos Plásticos,
este clandestino. Dei-lhes a ler o que escrevia, algum apelo aos camaradas
operários para que se levantassem contra a exploração capitalista. Calei-os.
Mas creio que ainda hoje, quarenta anos depois, ainda há quem me olhe com desconfiança nos
cafés onde escrevo…
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