Eu devia andar para aí zangado, a denunciar os males do Mundo, a criticar a incompetência dos políticos, a indignar-me com a corrupção. Sei que devia, não fosse a falta de tempo, não fosse este feitio pacato e, acima de tudo, o Sol primaveril que me afasta da Facebook, do ipad onde escrevo, para me levar para o sossego do campo, onde se não vê vivalma nem chegam as desgraças do Mundo, excepto quando o sino dobra a finados.
Quinta e sexta-feira sozinho na aldeia, sem conversar com ninguém, que não é conversa comprar pão ou pedir um café. Sábado, hoje, decidido a finalmente pôr a trabalhar motocultivador renitente, relapso e contumaz mandrião: desmontei e limpei-lhe o carburador, coisa que nunca na vida tinha sequer tentado. E não é que depois o salafrário trabalhou? Como posso eu, homem de Letras, que me devia reconhecer velho para aprender truques e mesteres novos, fino para sujar as mãos com gasolina e óleo, vir agora, quase a dormir de cansaço, despejar fel sobre a pátria, invectivar a humanidade, se estou inchado de orgulho por sozinho ter conseguido obrigar a trabalhar máquina com quem tenho mantido relação difícil, esgotante, exasperante?
Cada dia me surgem desafios novos. Como ter paciência para ouvir comentadores televisivos, ver reportagens à porta dos tribunais aguardando pela chegada dos advogados de criminosos mediáticos, participar no permanente diz-que-disse, se os afazeres me ocupam de manhã à noite? Inúteis? Ilusões? Não nego. Com quase tudo o que fazemos na vida, como quase tudo o que nos move na vida.
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