As palavras são fonte de ambiguidade. Por isso, nada como precisar o sentido que lhes atribuímos. Quando digo Karaté não me refiro a quimonos brancos, desconfortáveis e sem braguilha,a gritarias mecanizadas, as rituais, a formaturas e ordem unida. Tudo isso faz parte do Karaté, como hoje fazem as competições, mas não é o Karaté. São aspectos do Karaté, importantes, sem dúvida, mas que podem fazer esquecer, e fazem-no frequentemente, aquilo que realmente ele deveria ser: uma Arte de Vida. E de sobrevivência. Só assim se pode compreender, por exemplo, o 12 dos Niju Karaté Jutsu Kyokun, algo como Os Vinte Mandamentos da Lei da Mão da China, posteriormente mudada para Mão Vazia:
12. Não pensar ganhar, pensar em não perder.
Dir-me-ão: ideias do passado. Sem sentido nestes tempos de jogos olímpicos, de futebol, de competitividade exacerbada, em que os atletas e os não atletas são treinados para almejarem exclusivamente a vitória, mesmo que para tal destruam ou danifiquem irremediavelmente os seus corpos. Tempos em que as massas apenas se regozijam com taças, ao ponto de quase toda a glória ir para o vencedor, ao ponto de os segundos classificados chorarem de humilhação. Em que aquele que não enriquece seja lá como for é um pobre diabo, não raro um falhado, em que se mede a qualidade nas artes pelo valor das vendas...
Pois. O antigo Karaté, a fazer fé nas obras dos mestres da geração de Funakoshi, todos naturais da ilha de Okinawa, então relativamente isolada do Japão e da sua cultura, é unânime:
Travar 100 combates e ganhá-los todos não é prova de grande perícia. Esta estará antes na capacidade de vencer 100 vezes sem ter de lutar uma única.
Difícil, quase impossível. Porque pressupõe antes de mais o aniquilamento da vaidade, do orgulho, dos preconceitos ideológicos, para pensar unicamente no objectivo a atingir. No caso dos governantes, deveria ser no bem do povo, especialmente no mais pobre, no mais desfavorecido. Mas, como certamente nunca leram A Arte da Guerra, e se o fizeram nada entenderam, preferem a chantagem: arruinamos o nosso país, levamos connosco ao fundo outros mais vulneráveis, causamos prejuízos terríveis à Europa e ao Mundo! E os adversários, burocratas da Troika: se não cortam salários e pensões não levam nem mais um euro!
Qualquer que seja o desfecho, estoirem os gregos com tudo, ou alcancem vitória de Pirro para a propaganda doméstica e dos círculos ideológicos próximos, o povo miúdo vai sofrer muito. Que importa, dirão certos intelectuais privilegiados, para os quais sempre haverá pão à mesa, pianos e piscinas, e por isso são incapazes de perceber que faz mais falta um euro ao pobre do que um milhão ao capitalista que querem punir? Dos intelectuais do Facebook, que, certamente ofuscados pelo valor simbólico dos mitos, ou então por desonestidade intelectual, não hesitam em evocar a despropósito da crise grega a Retirada dos Dez Mil, em que Xenofonte relata como trouxe até à pátria os seus mercenários acossados por territórios estrangeiros e hostis, ou a Resistência aos nazis, em que se destacaram também países que agora se não solidarizam com a Grécia? Só ainda não compararam a situação actual com as Termópilas, talvez porque aí morreram espartanos, gregos mas não democratas, e porque a cabeça decepada do rei Leónidas foi passeada por entre as tropas persas espetada num pau, o que não seria animador para Tsypras e Varoufakis caso venham a perder a batalha...
Les jeux sont faits. Ou, fica melhor em Latim, Alea jacta est, de outro brilhante cabo de guerra da Antiguidade, o do genocídio dos Gauleses.
Eu, na linha de pensamento dos velhos mestres de Karaté preferia outro aforismo: Ganhar, perdendo. Coisa que não passa pelas cabeças brilhantes que de um lado e de outro jogam com as nossas vidas à mesa do póquer europeu, todas cegas pelos fundamentalismos ideológicos, de um lado os da esquerda caviar deslumbrada com o poder, do outro os sátrapas do capitalismo financeiro -- Ou vai ou racha!
Uns e outros safar-se-ão, não lhes faltarão depois palavras e argumentos para justificarem o que aí vem, encontrarem culpas, apontarem dedos acusadores.
Pobre mexilhão português, grego, cipriota, ou desses países para cujos habitantes ainda não conhecemos os nomes -- já sabemos o que nos espera quando o mar bate na rocha.