Et je ne suis pas bien sûr
Comme chante un certain
Qu'elles soient l'avenir de l'homme
(Jacques Brel, La ville s'endormait)
Imagino um extraterrestre, suficientemente perto para captar os nossos programas de televisão, digamos, num raio de uns setenta anos-luz. De nós só pode querer distância. E que não saibamos da sua existência, a medo de que lhe façamos como à cabra do Gerês - para quem se não recorda, no início do século passado foi avistada uma, a última sobrevivente da espécie, e o Diário de Notícias organizou uma expedição para a caçar. Dias e dias, sem olhar a despesas nem a esforços, a perseguiram por alcantis e penedias e não sossegaram até poderem exibir o seu cadáver como troféu!
Nessa época, a protecção das espécies não estava na moda e dois terços dos portugueses eram analfabetos, ou, quando muito, soletravam e sabiam assinar. De então para cá o analfabetismo foi quase erradicado, mas, ao contrário do que então se supunha, a instrução não tornou o homem melhor. As Luzes iluminam as ruas, decoram as cidades pelo Natal, divertem os cidadãos em artísticos fogos de artifício, mas não logram limpar-nos nos espíritos as trevas ancestrais da animalidade e da ignorância.
Se dúvidas houvesse, as notícias que preenchem os telejornais dissipá-las-iam. Ou a leitura dos comentários acintosos no Facebook, assumindo, talvez incorrectamente, que são representativos da mentalidade das gentes mais ou menos cultas, ou, pelo menos, letradas. Um manancial para psicólogos, psiquiatras e outros estudiosos da mente humana, um filão para escritores, mas quase um vómito a dar vontade de imitar o poeta Alencar de Os Maias e como ele, embora por razões diferentes, levantar as calças e deixar passar o enxurro.
Que gentes estas, com tanto ressentimento, tanta raiva, tanto azedume, tanta maldade, mergulhadas em tamanha pobreza de espírito! Que tristes devem ser as vidas dessas pessoas!
Consequência da crise, culpa do governo -- argumentarão talvez os que tiveram paciência para ler até aqui. Não nego. Casa onde não há pão... Mas pressinto que pode haver outras explicações. Por exemplo, o envelhecimento da população. Como cantava o grande Brel, "Plus ça devient vieux, plus ça devient con" (Les Bourgeois). E imagino o sofrimento de quem envelhece a sós nas grandes cidades, entre "le lit et le fauteil", outra vez Brel (Les Vieux)! Uns com reformas de miséria, ou a viver de magros subsídios, de ajudas de pais e avós, outros que puderam mas não acautelaram minimamente o dia de amanhã, e ele chegou ontem, talvez desligados dos filhos que enjeitaram ou não quiseram ter para gozarem das delícias do cavaquismo -- jipes, gadgets, férias nas repúblicas dominicanas e brasis... Porque então, como já tinha sucedido com a pimenta da Índia, com o ouro do Brasil, com o volfrâmio na segunda guerra mundial, a prosperidade seria eterna.
Mas não sou o tal extra-terrestre, a conhecer o Mundo e o Homem apenas pelas suas emissões de ondas rádio-eléctricas. Desvio o olhar do ecrã e vejo um ser imperfeito, mas capaz de melhorar, um país onde dá gosto viver, uma sociedade que, apesar de tudo, é hoje menos injusta, menos cruel, menos ignorante do que no passado. Sim, bem sei, nós, seres humanos, somos reles, as sociedades que construímos violentas, na maior parte do planeta a vida é um inferno. Mas, quero acreditar, as excepções permitem esperança ténue no futuro da Humanidade. Se o tiver.
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