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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Dia de Finados*

Deixava-se candeia de azeite ou candeeiro a petróleo aceso toda a noite, a torcida baixa, para que os nossos mortos, de volta ao lar, o não encontrassem às escuras, ou para que a luz débil os impedisse de nos assustar com a sua presença, só visível no escuro, suponho.

Acabaram candeias e candeeiros a petróleo, as velhas habitações foram abandonadas, hoje muda-se de casa como de camisa – onde podem os defuntos visitar os entes queridos, na única noite do ano em que tal lhes é permitido? 

(*2 de Novembro)

Halloween

Acabam de me tocar a campainha: dois vultos negros, a dizer Travessuras ou gostosuras. Não percebo. Repetem.
-- Não sou dessa religião, voltem amanhã, que é o Dia de Todos os Santos!
(Este meu feitio de velho ranzinza!)

Um par de botas


Aí por 1970, pobre mulher, de preto do lenço aos pés metidos em tamancos largueirões, entrou em sapataria da vila, a comprar calçado para o filho. 
A cada prova, pede outro par: -- Maiorzinho, que o pé está a crescer!
Tanto se repete a cena que às tantas o vendedor, exasperado, lhe sugere:
-- Minha senhora, porque é que lhe não compra umas botas 44, guarda-as debaixo da cama, que assim o moço ainda tem calçado quando for para a tropa?

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Montes, 1964

Sobre o pó das estradas, ou a lama, ou poças de água, mulheres e crianças andavam descalças. Eu levava sapatos para a escola, mas logo à saída me descalçava. O calçado, feito por medida no sapateiro da terra, era pesado, rígido dos protectores de ferro e cardas, e era desconfortável.
Era a liberdade nos pés, era a ligeireza, sempre fundamental para fugir de rapazola que me quisesse puxar as orelhas por lhe ter gritado a alcunha, ou de grupo que me quisesse “contar as velhas” – parvoíce muito em uso que consistia em agarrar rapazinho, deitá-lo ao chão, baixar-lhe calças e ceroulas, expor as suas misérias ao escárnio de raparigas de passagem, e sepultar a pobre gaita debaixo de bom punhado de terra.
Os pés descalços estavam expostos às agressões dos caminhos: topadas em pedras que rebentavam a cabeça dos dedos, espinhos, pregos, vidros que os laceravam… E o tratamento era terrível, autêntica tortura, aplicada por mãe desesperada, que outro remédio não conhecia, a criança que berrava e fugia: escaldar a ferida. Isso mesmo: meter o pé em água fervente, ou pingar azeite a ferver sobre o buraco infectado do espinho que acabava de ser extraído.
Sou desse tempo. Quase sempre às portas da morte: lombrigas, infecções, gripes constantes, sarampo, tosse convulsa, que me fazia ver luzes na escuridão do quarto quando tossia os pulmões, diarreias de caixão à cova, icterícia… Mas nunca tive piolhos, nem tinha, e só vi percevejos na asseada Lisboa.
Fui tratado, quase sempre, com a “medicina popular”. Dolorosa, fedorenta, ineficaz. Conheci demasiado bem o “mercúrio”, a tintura de iodo, a tintura de mostarda, o bálsamo, a aguardente com açúcar queimada e abafada, os escaldões, a enxúndia, as rezas. E depois, viva o progresso, vieram as sulfamidas, o Vick Vaporub, os rebuçados do Dr. Bayard, a aspirina… Mas esses são outros tempos, de transição para a nossa modernidade – em que, paradoxalmente, abundam os saudosos desse Portugal imundo, subnutrido, rude, malcriado e, o que mais me espanta, da “medicina popular”. A esses, deixo as palavras de um dos grandes mestres da escrita:
“Oo geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tamtos malles, nem foi quinhoeiro de taaes padecimentos!” (Fernão Lopes, Crónica d’el-rei D. Joham I)
FOTO do velho Kodak do meu pai: o meu irmão em bebé, eu mais atrás, a minha mãe, descalça; provavelmente 1964)

sábado, 22 de outubro de 2016

À espera do Inverno

Sexta-feira, 20 de Outubro, abri regos de drenagem.

sábado, 15 de outubro de 2016

Taxistas, Uber e o Admirável Mundo Novo

Agora que a guerra dos taxistas conhece uma trégua e os ânimos não parecem estar tão exaltados, atrevo-me a chamar a atenção para o cerne do problema.
A ameaça maior que pesa sobre os taxistas não é a que provém da Uber e afins, embora seja a mais imediata, porque, antes de mais, lhes desvaloriza os alvarás, a partir do momento em que deixam de ser indispensáveis para o exercício da actividade profissional, e não suporta idênticos custos comerciais, nem em pessoal, nem em impostos, licenças, etc.
A maior ameaça, e não é ficção científica, pendente sobre taxistas e TODOS os condutores profissionais de transportes rodoviários, públicos e privados, chega sob a forma de veículos sem condutor, em fase avançada de testes nos EUA e na Alemanha, por exemplo.
Se os particulares podem não querer, ou não poder, comprar um carro sem condutor, já os gestores das empresas de transportes de toda a natureza devem estar a esfregar as mãos de contentes com esta solução, previsivelmente mais segura, porque isenta do erro humano, e incomparavelmente mais barata.  E não duvido de que as grandes empresas do sector do táxi sejam das primeiras a aderir, dispensando os condutores que agora levam para a rua em protestos exaltados.
É a vida. Foi assim nos primórdios da Revolução Industrial, quando os operários em greve destruíam as máquinas que os enviavam para o desemprego, foi assim que profissões inteiras, algumas até medianamente prestigiadas, desapareceram. Por força do progresso tecnológico. Dactilógrafas, estenógrafas, relojoeiros…
Neste Admirável Mundo Novo, em que até as mulheres-a-dias se vêem ameaçadas por robots já acessíveis, que não se sentam a ver televisão no sofá na ausência das patroas, nem têm horário de trabalho nem salário, haverá cada vez menos trabalho, especializado e não especializado. Até que o ser humano, cada vez mais remetido ao papel exclusivo de consumidor e fruidor, seja, ele mesmo, dispensável.
A cada dia que passa, esse momento fica mais próximo. E os taxistas julgam poder adiá-lo, ou evitá-lo, dando uns pontapés nos carros da concorrência, por enquanto ainda com condutor…


terça-feira, 4 de outubro de 2016

Literatura chata

Muito me podem gabar certos autores. O que para mim conta é se passam ou não no teste da leitura inicial -- das primeiras linhas, de um ou de outro parágrafo lá para o meio, escolhido aleatoriamente.
A esmagadora maioria, de autores nacionais e estrangeiros, reprova. 
Porque lhes falta interesse, e parecem estar a encher morcelas, e vai gordura, e vai sangue, e vão cominhos em excesso, na forma de adjectivos empregues na ilusão de assim escreverem "poético". 
Porque a escrita não tem ritmo, não tem cadência. Porque não desenvolve, e lemos, lemos, e, como no velho lugar comum, nem o pai almoça nem a gente morre -- ou o seu contrário. Porque o seu gosto é diferente do meu -- por exemplo, um famoso autor americano começa com um "não as podes f. todas!" e eu ponho-o de lado, ainda na livraria, por achar a escrita vulgar, e não se pense que é pelo emprego do palavrão, magistralmente utilizado, por exemplo, por Gil Vicente. Outros livros, porque são chatos, andem neles à procura de carneiros selvagens ou leve o protagonista a amante para hotel e três capítulos depois ainda não tenham chegado a vias de facto -- neste caso, tinha decidido ler o romance, custasse o que custasse, mas acabei por dar parte de fraco.
Lembram-se de Boleano, esse génio da literatura? Bem tentei ler O Terceiro Reich. Acho que até consegui chegar à página 4. Bem menos do que nos Versículos Satânicos, no Ulisses, em que cheguei quase à centena antes de desistir.
Há dois anos, numa férias, emprestaram-me livro de autor português da nova vaga, de quem até já tinha lido um romance aceitável. Logo às primeiras páginas, uma adolescente, no momento de perder a virgindade, imagina que as partes do homem se desintegram e sobem por ela... Como é possível escrever tamanho disparate e a editora deixá-lo passar? Ou agora as moças, nesse momento marcante da sua sexualidade, entretém-se a imaginar cenas que nem nos desenhos animados se vêem?
Outro, pelos excertos divulgados no Facebook, põe uma personagem, também adolescente, a exigir que a amada os imagine velhinhos. Lindo, não? Só que os adolescentes, como aquele que fui, como os que conheci, como os que conheço, nunca serão velhos, pelo que tal proposta é simplesmente absurda...
E assim perdem um leitor, o que nenhuma diferença lhes fará. Contanto que os seus livros se vendam para prendas de natal e de aniversário, contanto que alguém os vá citando com veneração. 
-- Não gostas? Problema teu, não faltam admiradoras.
-- Criticas? É só inveja.